Saudades Eternas
 

Pensava ter chegado a tempo no velório. Outra pessoa usaria um lenço. Ela levava uma toalha, assim enxugava as lágrimas e apertava-a junto ao peito. Exagerada? Talvez.
A noite ela passara muito mal. Tinha que ir trabalhar mas não se deixa partir uma pessoa querida sem despedida. Assim ela decidiu que faria as duas coisas, afinal o sepultamento seria às 16h. Perto da hora do almoço ela pegou a pasta, a inseparável toalhinha verde, vestiu o blazer e partiu.
A manhã estava com aquele tom amarelado que a morte estende sobre as coisas. Ela conhecia aquela cor desde criança. Quando acordava na rede remendada e percebia aquela coloração entrar pelos buracos das telhas o seu coração se confrangia, notícia de morte haveria fatalmente de chegar.

Saltou do ônibus quase em frente à funerária. Não estava acostumada àquelas edificações, no Sertão os mortos eram velados em casa, no seio da família, em cima da mesa ou acomodados em caixões baratos.

Entrou. Homens na recepção.
"Amor, vieste ver o rapaz?"
Era com ela que eles falavam? Apenas chorava, trêmula e desamparada.  
Conduziram-na à primeira câmara. "Não, eu vim..." E os homens aperceberam-se do erro, "não, esse saiu às 8h..."
Sentou-se na poltrona e curvou-se sobre as próprias pernas. Tinham colocado o horário errado no anúncio do sepultamento. Os homens condoeram-se. Levaram-lhe água. Deixaram-na chorar sozinha porque a dor é território onde só se entra um de cada vez.
Quando ela ergueu a cabeça e seus olhos depararam-se com o caixão de mogno ela percebeu que havia algo pior que a morte; era viver só. Não havia uma vela acesa pelo morto. O livro de visitas, invenção estapafúrdia dos planos funerários, estava em branco. Uma coroa de flores artificiais com a inscrição "saudades eternas" estava postada à cabeceira do esquife, uma cortesia do plano. Compreendeu que os agentes funerários tinham preenchido o caixão com retalhos porque não havia flores para o estranho morto.

"Quem...?" - Perguntou aos trabalhadores.
 "Um rapaz. Qual era mesmo o nome dele?..." - Disse o mais jovem com a displicência de quem lida com a morte dioturnamente.
"Não lembro", respondeu o colega. "A gente pensou que a senhora era parente dele."

 Depois chegou o carro fúnebre e os dois agentes levaram o esquife, deixando-a sozinha na câmara ardente.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 23/04/2016
Reeditado em 02/07/2016
Código do texto: T5614167
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.