SIMPLES INSETO

Simples Inseto

Nasci livre (afiançaram-me), assim como todos antes de mim. Não tão livre que não tenha controle nas asas, nem tão preso que não possa sonhar (um pouco).

Sou um inseto.

Soa pejorativo, eu sei, mas é o que sou, o que somos. Gosto de voar e observar o mundo. Comida é o que nos move, precisamos comer para ter união e nos unirmos para mantermos nossa colônia sempre crescente e reprodutiva. Não há prazer envolvido, claro.

Às vezes, quando a luz do dia tarda partir, escapo da vigilância e me demoro fora de casa ... É bom no início, depois vai cansando e tudo que desejo é voltar para o meu lar, o lar de meus pais, retorno meio disfarçado pra evitar constrangimentos inúteis, mas continuo saindo sempre que dá, tenho essa mania, não sei (nem quero) explicar .

Um dia conheci outros insetos de um distante conjunto, possuíam pensamentos muito diferentes, falavam em evolução, liberdade de escolha, crescimento e aprimoramento, Deus e vida plena, enfim, um caos total, pensei. Lá em casa não é assim, somos ensinados que o chefe da Colônia é deus e que tudo é de todos, não importa o quanto você trabalhe, se mais ou menos, você receberá sua parte igual à todo mundo, a isso eles batizam de justiça social, ainda que seja meio injusto no final das contas (sentimento bobo, não levem a sério, é justo sim).

Lógico está que os superiores nossos - supervisores, revisores, gerentes, diretores, capatazes, chefes de departamento e muitos outros juntos com seus parentes ou amigos mais próximos ligados aos grandes cargos - recebem mais que a maioria de nós, possivelmente porque têm a responsabilidade por nosso bem estar, nada mais sensato, não é ? Não é ? Nunca pergunto.

É muito saudável viver assim, não há fartura, mas ninguém passa muita fome. Quando acontece da necessidade apertar, nós nos ajudamos mutuamente com nossos cacos e escapamos de uma tragédia maior, somos até felizes... Exceto quando alguns dos nossos somem (eles somem o tempo inteiro), quase sempre são aqueles que discordam do regime, mas logo depois, todos esquecemos (ou fingimos) e tudo fica bem...

Aqueles outros, os quais conheci em minhas escapulidas, se soubessem o que se passa aqui, aposto que falariam mal, iriam dizer que somos humanos demais (credo!) e que temos mais valor que isso, mas quem se importa com a opinião deles ? Quem admite se importar ?

Engraçado é que não sou o único a conhecê-los e mais engraçado é que ninguém fala que os conhece (nem eu), apesar de conseguirem aqui e acolá um produtinho diferente dos nossos, mas que ficam muito bem escondidos, se os supervisores encontram, ai meu Deus, perdemos mais alguns no sumiço...

Agora cismaram que temos de nos exercitar mais, ficarmos fortes porque outros insetos, externos ou internos, querem destruir nosso modo de vida, querem nos escravizar e outras coisas mais, eles falam isso o tempo todo, eu pessoalmente nunca vi nada parecido nas viagens que faço, parece até que ninguém está muito interessado na gente, não. Ao contrário, querem ajudar, como se precisássemos muito.

Mas se os dirigentes dizem, então é porque deve ser grave, aí entramos a correr, pular e dar ferroadas que não acabam mais, contra tudo, lutamos o tempo todo esperando uma invasão que nunca vem, a única vantagem é que esquecemos nossas tristezas e nem nos preocupamos tanto em como está, cada dia mais, difícil conseguir alimentos, mesmo que as colheitas sejam sempre maiores que as anteriores, mesmo que nossa população não aumente, aliás, tem diminuído com esses reordenamentos mais freqüentes.

Ontem, outro vizinho meu sumiu !

Ele queria uma ração maior porque sua filha teve filho, um insetinho lindo. O dono do mercado, muito cioso de sua posição, avisou o capataz, que falou com o supervisor, que comunicou ao diretor e meu vizinho não foi visto mais. Pelo menos agora a ração alimentar para os netos dele aumentou um pouco, a vida exige sacrifícios (o governo sempre nos diz isso) !

É assim que funciona, alguns dizem que precisamos agir, outros dizem que não, outros contam para os responsáveis quem queria agir e ficamos com medo a maior parte da vida.

Quer saber? Eu não me importo com isso, um dia vou morrer mesmo e pensar nisso sempre é tão cansativo, afinal de contas, eu sou só um inseto e não quero mudar nada, eles que façam o trabalho duro de nos proteger e nos alimentar, pensam que são espertos, nós é que somos !

Vou parar de escrever agora porque tem alguém batendo na porta...

- Bom dia, queremos entrar – e entraram.

- Claro, Sr. Diretor, é um prazer recebê-lo aqui (e sem dúvida, uma imensa surpresa), em que posso ajudá-lo ?

- Soubemos, meu caro, que você é escritor, um inseto escritor , veja bem.

- Quem? eu? bondade de quem falou, uns rabiscos, umas notas, nada demais...

- Soubemos também que você é bastante crítico sobre o modo de vida da nossa próspera e feliz colônia.

- Não diria que são críticas (agora estou realmente assustado), eu elogio sempre (embora “próspera e feliz” nunca tenham me caído na folha) e até gosto de viver aqui, estava terminando de escrever isso inclusive, sobre a grande responsabilidade dos senhores em cuidar de nós com patas de ferro ( essa expressão não foi bem recebida, tive essa impressão).

- O senhor sabia que seus escritos foram encontrados em outros aglomerados e que estes tiveram uma visão bastante negativa de nós, como se fôssemos autoritários, como se nosso senso do Estado Ideal, participativo e social, estivesse errado ?...

- Como podem pensar uma coisa dessas ?... É essa liberdade geral deles que os atrapalham na interpretação de nossa conjuntura (outra colocação mal colocada, digamos assim, percebi na hora).

Um pouco vermelho, o diretor (meio brusco) perguntou :

- Esse papel é o seu último “rabisco” ?

Quando respondi positivamente, ele se deu um grande sorriso com a “prova” na mão e eu, por uma simples empatia gratuita, sorri também.

- Queira nos acompanhar, por favor, meu jovem inseto, devemos lhe mostrar algo importante, não precisa pegar documentos ou roupas, nós providenciaremos tudo, não se preocupe com nada – desta forma, encerrou-se a visita cordial e receio que algo mais esteja prestes a se findar igualmente.

Dei uma última olhada nos meus aposentos, saímos para a rua deserta com tantas portas e janelas estranhamente fechadas e de imediato, senti uma saudade inexplicável e imensa de mim.

Olisomar Pires