VERDADES PEQUENAS

Como dizia o Chico, no tempo em que em que os dias nunca eram claros o suficiente, para prenunciar paz: - Já de saída minha estrada entortou, mas vou até o fim.

Estava ainda no colégio, e após uma apresentação teatral amadora, na qual tive grande participação no texto e performance (grande em extensão, mas sofrível em qualidade), recebi de minha professora de filosofia uma observação curiosa e profética:

- Você tem talento e algo mais. Todavia, esse “algo mais”, mesmo que o capacite a fazer algum prodígio, também lhe acarretará discórdia, solidão e tristeza. Sua postura sempre será pautada pelo princípio consciencial, enquanto a grande maioria se guia pelas circunstâncias ou pelo afã momentâneo, e isso o distanciará de todas as questões humanas e sociais. Quando todos estiverem comprometidos com o fluxo ou refluxo da maré, você estará na praia, olhando e sentindo, mas incapaz de assumir uma única posição, por entrever o mal que há no bem de cada uma delas. Ninguém nunca entenderá ou apoiará essa postura, então posso lhe garantir que sua existência será plena de pequenas e grandes desavenças dissimuladas, a lhe travar.

Como se dissesse que eu sempre estaria fora do contexto, agindo contra tudo e todos.

Isso foi dito há quarenta e três anos, e continua, plenamente, válido e atuante.

Em criança, preferia ler a brincar, como já disse antes, e não tinha amigos. Por conta disso, fui levado a vários psiquiatras, que chegaram à conclusão de que eu não era louco, mas somente esquisitão. Na adolescência, segui o caminho artístico, numa época muito complicada da ditadura (não que tenha havido tempo melhor naquele regime), e por não conseguir admitir a prepotência reinante, cuspi muito sangue. Só que não era apenas com os milicos que não me acertava, mas também com quem se opunha a eles, pois nunca admiti o uso da violência, não aceito a idéia de que os fins justificam os meios, não apoio ditaduras (de esquerda ou de direita) e não apoio a subversão do conhecimento e cultura, em favor da demagogia populista.

Também não conseguia me entrosar com o pessoal do meio artístico, por não partilhar de suas preferências orgíacas, narcotizantes e fumageiras. Respeitavam-me, mas nunca me consideraram amigo, pra valer. Se eu estava presente, cochichavam entre si.

A partir de certa idade, por força de situação adversa, tive de abandonar a arte e seguir uma carreira ligada ao meio empresarial. Não gostava de minhas tarefas, mas não tive como me safar dessa empreita, então me dediquei ao máximo, para tentar fazer o melhor. A partir de alguns sucessos profissionais, passei a ser respeitado nesse segmento, também, mas assim como acontecia antes, não granjeei amizades ou simpatias, senão convívio profissional.

Certa feita, a convite de um empresário conhecido, encarei a difícil tarefa de recuperar uma empresa à beira da falência, que tinha pertencido ao governo local, mas foi adquirida pelo meu cliente poucos meses antes. Em pouco mais de oito meses consegui fazê-la retornar aos trilhos do desenvolvimento, e fui convidado a dar uma entrevista na TV estatal. Não pretendia aceitar, mas meu contratante disse que seria uma afronta dizer não. Quando aquiesci, ele veio me convencer a ser condescendente com o regime vigente e concordar com tudo.

Fui entrevistado, fui sincero, fui odiado, fui preso e só consegui sair ileso do país, porque a estrutura ditatorial estava capenga, e meses depois o regime caiu. O cônsul brasileiro que foi me acompanhar até o aeroporto, só faltou cuspir na minha cara, xingando-me o tempo todo.

Embora eu viva grande parte do tempo enfurnado em minha casa, lendo e escrevendo, sem ter quase nenhum contato com os acontecimentos em volta, eventualmente converso com uns e outros, mas me obrigo a ouvir mais do que falar, pois não tenho como tomar partido nas picuinhas cotidianas, nos grandes eventos da mesquinhez nacional ou internacional, em teorias conspiratórias insólitas, no que parece importante, mas que consiste em apenas aparência, e nas enganações ideológicas, que são aceitas como grandes verdades, mas são furadas.

Não sou dono da verdade, não tenho pretensão alguma, não aprecio contendas, não torço por alguém ou algo, não tolero disputas ou competição e aguardo o dia em que o mundo não terá cercas fronteiriças, nacionalidades, divisões políticas ou sociais. Sei que terei de viver centenas de vidas, antes que isso possa ocorrer, mas sonho não se mede ou se apraza.

Vivo num mundo de pequenas verdades, personalizadas, adaptadas ao jeito de ser de cada um. Somos tão arrogantes, que pretendemos domar a realidade ao sabor de crenças e ideias pessoais ou coletivas, e nem percebemos que, por mais que dure nossa tola atitude, a natureza sempre há de se impor e restabelecer a ordem natural. A única verdade eterna.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 01/05/2016
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