RUA DAS CEREJEIRAS

Um botequim com balcão de madeira, por onde se debruçava uma esfíngica atendente, surgia com frequência nos sonhos de Tomás Moros. O ermo prédio, conforme placa cravejada na parede do biongo, situava-se na Rua das Cerejeiras. O desviado local parecia hospedar outra dimensão. Estimulado pela curiosidade, Moros pesquisou sobre o logradouro. Inicialmente, consultou, sem êxito, o mapa da cidade. Depois, recorreu, sem sucesso, aos arquivos municipais. Embora não possuísse referências, Moros resolveu encontrar a Rua das Cerejeiras. Para isso, introduziu-se de forma aleatória no agito cosmopolita. As ruas eram palcos dinâmicos e alastrados, onde os “scripts” sobrevoavam dispersos. Após vencer inúmeros e ruidosos quarteirões, ele encontrou uma paisagem inédita. Seres, prédios e máquinas ficavam para trás. À sua frente, surgia uma densa vegetação cortada por vereda de chão batido. Ultrapassadas cerejeiras em flor, Moros avistou o isolado botequim que ostentava uma placa correspondente à rua procurada. Recepcionado pela mulher que lhe aparecia nos sonhos, apoiou-se no balcão e viu as prateleiras quase vazias. A atendente, chamada Fortune, informou que eram raras as pessoas que visitavam aquele lugar. Enquanto bebia o refrigerante que lhe foi servido, Moros experimentou uma profunda decepção, pois o local que tanto o instigara, pouco lhe tinha a dizer. Refreada a sede, ele pagou a despesa e se preparava para retornar, quando a estranha mulher, unhas enormes, pregou sobre a bancada um bilhete de loteria. Implorou que comprasse. Seria uma forma de ajuda. Sensibilizado pela irônica condição de Fortune, que praticamente se encontrava sumida do mundo, Moros adquiriu a cédula e a guardou no bolso junto com algumas flores de cerejeira que antes houvera colhido. Ao chegar em casa, jogou na gaveta da escrivaninha o bilhete e as flores intensamente belas. Depois, pelos caminhos da habitualidade, Moros voltou a interpretar seus papéis. Durante as atividades oníricas, vieram apenas reflexos do trivial. Fortune não mais lhe apareceu. A atendente misteriosa do botequim da Rua das Cerejeiras ficaria para sempre esquecida, não fosse um lembrete do acaso. Certo dia, Moros viu-se acamado. Após a leitura do jornal, ligou o televisor e se deteve em um noticiário que não costumava assistir. Dessa forma, veio saber que o prêmio milionário da loteria não havia sido resgatado. Lembrou-se de conferir sua aposta. Eis que, subitamente, superou a indisposição. Estava rico. O futuro desenharia inúmeras possibilidades, a começar pelas Comemorações ao sabor dos melhores champanhes. Recebido o prêmio e delineados os investimentos, Tomás Moros quis recompensar a vendedora do bilhete que se escondia lá pros cafundós da Rua das Cerejeiras. Refez o trajeto inúmeras vezes, mas não a encontrou. Sequer o afastado botequim. Nem mesmo as cerejeiras. Nos cadastros do município inexistia o misterioso logradouro. Consultas a historiadores restaram frustrâneas. A descrição de Moros não possuía correspondência na realidade. Entretanto, uma coisa era inegável. A premiação ocorreu. E não foi só. Dia desses, ao revirar as gavetas, Moros encontrou algumas flores de cerejeira, desbotadas e sem viço.