Depois

Seu caminho habitual havia ficado largo, luminoso, sorridente, e era com firmeza que seus passos ecoavam sobre a calçada tantas vezes pisada e da qual conhecia todos os buracos e saliências. Novamente passava à frente da casa vermelha de porta de madeira, do sobrado amarelo (um tanto decaído) que estava para alugar havia meses, do boteco sem nome na esquina onde meia dúzia de pobres coitados iam enxaguar suas preocupações ao final do dia.

Era tudo igual, mas nada parecia igual. Havia uma luz difusa, um brilho estranho e comovente que fazia tudo reluzir. Nem mesmo o sobrado lhe pareceu, desta vez, tão decrépito quanto sempre fora; pelo contrário, a janela frontal poderia ser consertada facilmente, o beiral poderia ter a calha trocada e a fachada pintada num tom mais alegre. Anotou o telefone da imobiliária atrás do cartão do dentista.

Estranho como andava agora com a cabeça erguida, ou assim lhe parecia, pois enxergava muito além - quase três quadras à frente. Na verdade, divisava a avenida que fazia limite com o próximo bairro, e mais ainda, percebia com nitidez os contornos da serra que ladeava sua cidade. Andar parecia fácil e suave e era para lá, para um ponto muito além de onde sua vista alcançava, que se via caminhando sempre, passos decididos e cheios de significado.

No bolso da calça, o maço de cigarros. Pegou-o e, com um sorriso oculto, jogou-o na lixeira próxima. Um leve arrependimento o assaltou imediatamente (o maço quase intacto, apenas um cigarro consumido), porém em seguida tranquilizou-se com a lembrança da promessa. Era um homem, podia dar conta disso. Alugar o sobrado, pintá-lo, mudar-se. Trabalhar mais, ter uma promoção - há tempos seu chefe o sinalizara. O ar mais fresco, a serra ao longe, vislumbre de dias bons.

Foi depois daquele dia em que mal chegara ao trabalho e já precisara sair correndo, pois ela o chamara ao telefone com dores agudas. Voltara à casa às pressas, pegaram tudo e voaram ao hospital. E já naquela mesma tarde, sua vida havia mudado. Como estava diferente de ontem, de anteontem. Como estava diferente de há um ano atrás. Depois daquela tarde surgiu um novo homem que podia dar conta de tudo, tinha trinta e dois, tinha futuro, missão. A vontade de fumar foi sufocada por um outro desejo, estranho e diferente; parecia-se com o sexual, mas menos urgente, mais elevado. Era um tesão de corpo inteiro, uma gana de fazer coisas grandiosas que abafava o leve temor que, sem querer admitir nem a si mesmo, também surgia de dentro. Medo e desejo, certeza e esperança: podia tudo, absolutamente tudo, até voar por sobre a avenida e chegar à serra, de onde respiraria fundo e gritaria, ele nasceu, é um menino, eu tenho um motivo para viver.

...........................................................................

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Depois Daquela Tarde

Saiba mais, conheça os outros textos:

http://encantodasletras.50webs.com/depoisdaquelatarde.htm