A DESPEDIDA DA DIVA

Guardo a ideia dum estremo despojamento, como se as histórias estivessem despidas de personagens e a acção se movesse sozinha entre as palavras como uma pessoa: alguém que as teria escrito, um eu que as estará ainda a ler.

A noção de despojo está ligada a este vazio onde me parece que a representação reivindica para si o impossível, tornando-o possível com uma serenidade semelhante a uma "poesia do absurdo". Vou tentar escrever esse poema, versos onde podemos ver um poema/ poeta/ compositor... sentindo, lentamente, o coração a bater no peito enquanto é arrancado e mostrado, com o hiper-realismo dum filme em câmara lenta.

São gritos a música, como se estivéssemos junto duma gaiola, um palco imenso iluminado, muito próximo, dando uma sensação de profundidade, onde cabem cantoras líricas tentando tirar estertores da voz, até estrangular para além delas toda a beleza dos sons, nas suas gargantas.

Quando se calam batemos palmas, mais palmas. Durante infindáveis minutos, como se agora fosse nosso o espectáculo, como se mais nada existisse ou pudesse ter interesse: não queremos ir embora, queremos apenas estar ali a vê-las, emocionadas, fazendo gestos patéticos, abrindo os braços, olhando umas para as outras, indicando-se, fazendo vénias, dizendo por gestos que as palmas são para nós.

Finalmente saem e já não voltam, só - eu fico ainda - só, a bater palmas: lentas, cada vez mais lentas, levando as mãos até perto dos ouvidos, para as tentar ouvir, mesmo quando já não toco uma mão na outra, atento, procurando no movimento ainda ver, sentir os ecos.

Ponho as mãos sobre os olhos, choro. As pessoas ao meu lado vão saindo, as que ainda me vêem fazem de conta: a emoção é uma coisa tão pessoal que os outros respeitam, é a emoção do vazio, o despojo do que já era, o resto da humanidade. Alguém a sofrer, a sentir a arte onde a arte já não existe e é a loucura a sair do palco para a vida, como se ainda estivesse a ser representada, tudo e nada, nos sons da música.

Sons duma música onde os versos não têm uma forma visível para os olhos, guardam a pantomima da escrita: mimam as letras, os símbolos, movem-se nas frases, sentem-se nos olhos: estamos de olhos fechados a ouvir "o fado" (o destino) que a cantora canta de olhos fechados. Queremos, também nós, sentir na garganta a emoção do canto, o espanto da revelação!

O teu corpo gordo, quase disforme, a contrair-se de riso, até desfalecer: contando como te (te/se) sentias em palco enquanto recebias palmas e fazias vénias como um macaco amestrado metida dentro do corpo como se fosse um enorme saco de batatas ou uma caixa de ar móvel, mas nada prática, sobre umas pernas cuja função era suportar o peso, sofrer com ele.

Rias, contando como desmaiaste a olhar para mim patético, na pantomima de bater palmas, levando as mãos até próximo dos ouvidos e simulando palmas uma vez, duas, três... até deixar cair as mãos e mover o abandono na direcção dos outros, procurando um lugar na rua, qualquer coisa semelhante à vida: partilhar um pouco do destino.

Imagino-te a ler este texto parágrafo a parágrafo, um após outro. Até te lembrares que os podes abrir, ler, por ordem diferente:

imagino-te a ler este texto parágrafo a parágrafo, um após outro;

rias contando como desmaiaste a olhar para mim, patético;

o teu corpo gordo, quase disforme;

sons duma música onde os versos não têm uma forma visível;

ponho as mãos sobre os olhos, choro;

finalmente saem e já não voltam, só - eu fico ainda - só;

quando se calam batemos palmas, mais palmas;

são gritos a música, como se estivéssemos junto duma gaiola, um palco imenso;

a noção de despojo está ligada a este vazio;

guardo a ideia dum estremo...

Opero a cantora lírica, deixo-a rir de felicidade e adormecer de cansaço: saio em silêncio do palco, dorme sentada num enorme maple, reclinada sobre almofadas, um dos braços pende, cai para o chão, apago a luz da sala e deixo-a, tão depressa não a torno a visitar, quando voltará a ter um êxito como este? Foi a sua despedida, todas as suas maiores rivais e amigas estiveram presente numa peça hiper-mediática dum compositor que apenas quis subir ao palco ainda antes do espectáculo para falar da peça dizendo que no final já não se apresentaria a reivindicar louros duma obra que já não seria sua.

Foi simpático, explicou que se limitara a preencher uma pauta escrevendo para a cantora lírica. Disse que quando ela morrer será insubstituível como qualquer um de nós, com a particularidade dela ter sido única para tantos que os limites do seu corpo só lhe caberiam na voz como se cada um a tentasse guardar na memória e reproduzir em silêncio como memória (mesmo digital)...

Explicou ter sido esse o seu momento de composição: a febre duma ideia, o medo de não conseguir lembrar os sons que se perdem, os gritos nas modelações dum canto trabalhado, as notas duma escala onde ele tentou imaginá-la mais que humana "o super-homem".

O homem estava vestido como um manequim, de casaca. Estava a falar do palco como se não tivesse deixado que lhe tirassem aquela casaca de corte clássico, completando o quadro da sua pessoa a bengala lisa com uma bola no punho, empunhada pela mão esquerda, como se fosse continuidade do braço, segura pelo centro de gravidade.

Disse que não iria assistir ao espectáculo, ouvi-lo-ia em reprodução. Explicou que procurara nos sons uma emoção que não admitia a excessiva realidade do corpo, da vida, e da representação. Sabia, julgava saber, esperava que cada auditor conseguisse chegar às lágrimas. Quanto a ele, chorara enquanto compunha algumas passagens procurando tirar do piano os sons que imaginou só serem possíveis para a voz das divas. A elas caberia agora a honra da festa, estava na hora dele abandonar o palco.

Ainda, como quem conta um segredo, disse ter tirado a letra às árias da ópera por achar que as palavras não conseguiam igualar a música. Talvez apenas a rosa duma prosa pudesse tentar descrever o que tentara fazer, deixou para os críticos musicais poderem contar uma história nascida da leitura dos sons. Para ele, fora/era "a despedida da Diva".

Chamou-a ao palco, houve uma ovação estrondosa! Beijou-a, saiu do palco deixando-a ficar. As palmas continuaram, ela estava quase aturdida, via-se que queria segui-lo mas também ela queria que ele viesse de novo ao palco. Batia palmas com algum custo, mas isso sou eu, agora no fim, ainda a imaginar o principio da história.

O maestro voltou ao palco e explicou-se, desculpem, perdi a noção do espectáculo, já aqui não queria voltar. Estive a beber um copo de água a pequenos golos, não deixei que ninguém me empurra-se para aqui regressar. Fui pensando que esta energia, a energia que sai da plateia, ela já está presente no que pode ser ideia de criar o espectáculo - a obra.

A peça já começava a igualar-se à fantasia, do que ele imaginara -desejara para o espectáculo. Chamou ao palco as outras divas, tendo dito uma por uma seus nomes. Só dizia um nome depois do anterior ter corpo e rosto, foram mais cinco minutos de palmas intensas. Estávamos já cansados, ele foi o último a sair do palco levando a Diva pela mão. Correram o pano da boca de cena, voltaram a abrir lentamente, ouvia-se agora o silêncio.

Francisco Coimbra
Enviado por Francisco Coimbra em 15/07/2007
Reeditado em 15/07/2007
Código do texto: T565986