Beatriz
 
As dobradiças enferrujadas rangeram um lamento antigo quando Beatriz levantou a tampa do velho baú.
A mão direita, fina e longa, ficou suspensa no ar enquanto seus olhos cor de água percorriam as lombadas dos livros grossos que ela trouxera consigo de Portugal: Dom Diniz, Gil Vicente, Antonio Vieira.
Beatriz adorava ler. Naquelas páginas amarelecidas ela penetrava como em uma floresta úmida que tinha o poder de levá-la para longe daquele Sertão, do marido analfabeto, dos filhos que parira mas não amava, cuidava deles tão somente por dever.
Desejava nunca ter se casado. Fizera-o por saber que, naquela terra de selvagens, necessitava da proteção de um homem e para obtê-la tinha que tornar-se sua esposa. Era a palavra que usavam mas a verdade era que ela tinha se tornado criada de um vaqueiro. Desde que saíra do Alentejo, os poucos vestidos e o velho baú que pertencera à sua avó, Beatriz nunca mais tinha encontrado a felicidade porque ela, a felicidade, ficara daquele lado do Mar, dentro de duas mãos que não se ergueram sequer para acenar-lhe um adeus.
Ele se casara com outra. Declinara do seu amor. Era uma humilhação grande demais para suportar e ela, altiva e orgulhosa, não se permitiu continuar pisando a mesma terra que ele. Quando entrou naquele velho navio rumo ao Novo Mundo ela chorou suas últimas lágrimas de amor.
Suas mãos trabalhavam uma trança lenta nos cabelos prematuramente brancos enquanto o seu pensamento vagava pelas lembranças do passado, a travessia, a chegada ao Brasil, os parentes se espalhando e o Destino conduzindo-a àquela terra cuja aridez estendera-se ao seu coração. Aquilo não era lugar de gente porém qualquer lugar longe dele, dos olhos dele, da voz dele era o suficiente. Às vezes se desesperava, tinha vontade de voltar, saber onde ele estava, implorar mais uma vez por um olhar e então, enraivecida, socava com mais força o café no pilão ou ia para o terreiro lascar os paus de lenha com a foice. O marido respeitava o seu silêncio e secretamente a temia. A altivez do olhar dela o incomodava, já tinham seis filhos e ele ainda desviava o olhar quando ela o encarava. O que ele guardava no peito sem encontrar palavras para expressar era que ela o fazia sentir-se inferior com sua simples presença, quando se sentava em sua cadeira de encosto para ler um daqueles livros tinha o porte de uma rainha.
Ele não sabia quase nada sobre ela. Nem precisava. Bastava a certeza de que ela se casara moça e que cuidava bem da casa e dos filhos. Quando ia lavar roupa no açude levava as crianças consigo e a janta nunca tinha atrasado. Ela mesma matava e pelava os porcos, torcia os pescoços das galinhas e queimava as caranguejeiras com o mesmo jeito displicente de puxar uma cadeira. Mas Beatriz não se dava conta disso. Já não reparava em si mesma porque corria um grande risco de encontrar o poço sem fundo da tristeza, de caminhar à beira do precipício daquela sua imensa solidão. Por isso não parava. Aos que perguntavam por que tantos afazeres ela respondia que não sabia ficar sem ter o que fazer como uma desocupada mas ela sabia que, se parasse, secaria como os açudes em período de estiagem.
Perdida em suas lembranças Beatriz não viu o tempo passar. Quando deu fé já as cores do Sol já tinham mudado, o marido não tardaria a chegar.
Fechou a tampa do baú com cuidado e levantou-se para fazer o baião de dois com toucinho. Dentro da rede o bebê se mexeu e chorou. Ela pegou a criança no colo e disse “chora, pequena, chora enquanto há quem olhe por ti porque nem tu, nem eu e nenhuma mulher dessa família há de ser feliz.”
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 15/06/2016
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