Implacáveis

- Achava mesmo que eu não sabia? Ingenuidade. Era só sair de casa que percebia atrás de mim sua presença, quase dava para ouvir sua respiração. No começo eu olhava para trás, ele estancava e me acenava. Ao continuar a marcha, voltava a me seguir. Se eu novamente olhasse, novamente ele parava, constrangido, e lá vinha outro aceno idiota. Depois passou a, pateticamente, esconder-se todas as vezes que me voltava para certificar-me de sua atitude absurda.

Até que parei de olhar para trás e passei a fingir desinteresse. Depois, mais que isso, tentei me enganar, fazendo de conta que ele não se incomodava com meu andar manco, meu braço curto, o dreno no meu cérebro. Imaginava – e por alguns instantes chegava até a acreditar – que eu era uma pessoa normal e não fazia nenhum sentido que alguém me seguisse tentando se certificar de que pegaria o ônibus certo, não deixaria cair minha mochila, não seria molestado.

“Mas a fantasia durava pouco e em seguida voltava a sentir ódio. Ódio de meus defeitos físicos, de ser considerado um incapaz. Ódio do cuidado obsessivo que me fazia sentir um ser inútil, alguém totalmente dependente e à margem da normalidade. Às vezes o ódio era tão intenso que escapava de mim e respingava nos outros, como a sopa que ela esquecia fervendo sobre o fogão enquanto cuidava de seus vícios. Ela, cuja vida pregressa de irresponsabilidade deixara marcas profundas em seu corpo - a ponto de gerar um aleijado que sentia um ódio líquido e viscoso como a sopa se esvaindo da panela. ”

“Depois que ela morreu, tudo ficou mais fácil. Pude dar continuidade à vida, cuidando sozinho de mim como sempre fiz - e até melhor, pois estava livre dos seus acessos de loucura. Porém a perseguição ficou mais acirrada. Ele não tinha mais a mulher para cuidar, então sua atenção se voltou toda para mim e passou a viver em função de me seguir aonde quer que eu fosse. Minha vida, que já era um inferno, alcançou maiores profundezas e o ódio passou a ser minha melhor companhia. ”

“Então, foi naquele dia de muito ódio e chuva que eu consegui cumprir o que vinha planejando há tanto tempo. Assim que saí de casa, certifiquei-me de que ele viria atrás de mim, o que de fato aconteceu. Então veio o elemento surpresa: entrei de repente no mercado lotado, com uma rapidez da qual jamais havia me julgado capaz. A atitude o desnorteou e ele bem que tentou me perseguir, mas me embrenhei no meio das pessoas e saí pelo outro lado, perto da linha do trem, que atravessei o mais rápido que minha perna manca permitiu. Daí foi só esconder-me atrás da estação e sair pela lateral, margeando as árvores que faziam a divisa da via com o parque. De lá, foi fácil caminhar até o ponto do circular e chegar à rodoviária. “

“No ônibus, sentia a brisa úmida entrar por minhas narinas como o prenúncio de uma nova vida, longe dele, longe de sua perseguição implacável, daquele seu cuidado grudento e limitante. Finalmente seria um homem livre. Não pensava ainda se na nova cidade onde iria recomeçar haveria um emprego, com minhas dificuldades e tudo o mais; nem cheguei a imaginar onde iria dormir e nem mesmo por quanto tempo o dinheiro que havia levado – tudo o que eu havia conseguido juntar nos últimos meses de salário mirrado de deficiente – poderia me manter. Mas era liberdade que eu saboreava com um sorriso de alívio nos lábios, quando o caminhão veio no sentido contrário, derrapando descontrolado na pista molhada, e o ônibus não conseguiu desviar. Foi tudo tão rápido... “

Suspirou e olhou nos olhos de seu interlocutor, perguntando:

- Mas enfim, o que aconteceu? O acidente deve ter sido muito grave, eu deveria estar num hospital ou coisa assim, mas na verdade sinto-me ótimo. Onde estamos?

- Você está em casa, meu filho – respondeu a figura à sua frente, com uma voz bondosa.

- Em casa? Não me diga que ele me achou e me trouxe de volta...

- Não é bem isso.

O rapaz olhou em torno. Não reconheceu sua casa, aliás nada viu além de brumas. Arregalou os olhos. A voz agora parecia ecoar naquele ambiente enevoado:

- Filho, eu sei de tudo o que você sofreu. Acompanhei seu nascimento, o sofrimento de seus pais com suas deficiências, a forma como sua mãe destruiu a própria vida e o cuidado excessivo de seu pai. Vi seu crescimento, entendo sua necessidade de liberdade e sei o que você sente a respeito, e quando tomou a decisão de partir eu...

O jovem o interrompeu bruscamente com um gesto das mãos:

- Espere um pouco... Você também me persegue?

Uma gargalhada potente encheu os ares, mas foi refreada pela raiva que vinha da outra parte:

- Você também acha que sou um inútil, um pobre deficiente que precisa de cuidados vinte e quatro horas por dia? Você me observava até em meus pensamentos enquanto eu achava que estava sendo observado fisicamente por outra pessoa? Que espécie de complô vocês tramaram contra mim? Seu imbecil prepotente! Que inferno isso! Que sina demoníaca viver sendo observado! Para mim chega, vou sumir daqui agora.

Nervoso, tentava inutilmente afastar a névoa com as mãos, enquanto caminhava com passos duros sem saber aonde estava indo. Deus, em sua infinita bondade, compadeceu-se do jovem rapaz: sorrindo, devolveu-o à Terra para uma nova chance. Desta vez, com um corpo totalmente perfeito - tão perfeito que foi um dos escolhidos para participar de um reality show. E milhões de pessoas passaram a acompanhar diariamente, durante meses, cada movimento que fazia fechado dentro de uma casa.