REFLEXO NO ESPELHO

Ao abrir os olhos naquela manhã, não conseguiu entender o que estava vendo e um sentimento indesejado começou a tomar conta de todo o seu corpo. Queria fugir, mas não podia, não conseguia e isso lhe trazia uma angústia insuportável. Era um ato simples, fechar os olhos, porém não tinha força para tanto e a imagem permanecia estática a sua frente. Forma esquelética, de aparência medonha, incapaz de dar um passo, incapaz de mexer um músculo... Olhos, ao mesmo tempo, tristes e sombrios. Que mistérios esconderiam? Que segredos?

Um sentimento de medo, de culpa talvez, lhe invadiu o corpo e a alma. Permanecia inerte, mudo, quem sabe surdo, pois não era capaz de ouvir as batidas do próprio coração. Será que possuía coração? Não sabia e isso lhe atormentava. Na verdade, não sabia de nada, desconhecia o espaço, o tempo, desconhecia a si mesmo, desconhecia a imagem que tanto lhe perturbava e lhe causava arrepios.

De repente, um movimento. Viu os lábios da forma se entreabrirem, pareciam que queriam dizer algo, ou seria apenas uma ilusão? Não, não era ilusão, a forma realmente estava prestes a lhe contar o que sua memória se mostrava incapaz de lembrar. Um piscar de olhos e uma pergunta é lançada: “Como alguém pode matar por amor, se então amava? Matar por amor, matar...” Já ouvira aquilo antes, mas não conseguia se lembrar onde, nem quando, estava perdido.

Um pensamento então lhe surgiu à mente, queria se desfazer dele, porém era mais forte. Será que havia matado, matado por amor? Seu coração lhe dizia que possuía um grande amor ou um dia já possuiu. Um amor sincero, um amor só seu. Estava confuso, seu coração lhe dizia coisas que não condiziam com suas lembranças.

Flashes de cenas antigas começaram a surgir em sua mente.

Andava só, com passos apressados por uma escura rua do centro da cidade, quando um desconhecido o parou bruscamente: “Como alguém pode matar por amor, se então amava?” Pensou que fosse um louco, um bêbado talvez, não deu muita importância e seguiu seu caminho. Na noite seguinte, na mesma rua, deparou-se novamente com o misterioso homem: “O amor é um mistério, destes que o homem se põe a desvendar, então me responda, como alguém pode matar por amor, se então amava?” Desta vez não fugiu, permaneceu e com certa agressividade repetia inúmeras vezes a mesma pergunta, foi quando retirou uma arma do bolso e apontando para ambos, insistia em querer uma resposta. Inesperadamente, uma confissão... Aquele homem havia matado e segundo ele, matado por amor. Mas como ter certeza se eram verdadeiras aquelas palavras?

Ouviu-se um tiro...

Batidas à porta, e de súbito acordou do estado de transe em que se encontrava: “Vamos filho, o enterro sairá em poucos minutos.” Sem resposta a voz desapareceu e só os passos foram ouvidos e cada vez mais distantes, até que se tornaram mudos. “Enterro, enterro...”. As coisas começaram a ficar mais claras e uma lágrima escorreu-lhe pela face. A forma parecia também chorar.

A sua mente havia lhe pregado uma peça, não fazia anos que aquele fato ocorreu, como ela parecia querer acreditar. Naquele momento desejou ter amnésia, ou melhor, desejou ter morrido junto com aquele homem, pois dessa forma não sofreria e não se lembraria da cena, do homem, do sangue, da pergunta e da mulher. Mais lágrimas começaram a cair.

A imagem daquele corpo estendido no chão o deixou perturbado, sem ação, a ligação para a polícia foi um ato puramente instintivo. Depois, aquelas intermináveis horas de espera por causa de um simples depoimento, uma espera que lhe custou o jantar com sua noiva. Tentou centenas de vezes entrar em contato com ela, mas sem sucesso, o celular estava fora de área. Saiu da delegacia altas horas da noite, uma tola esperança o levou a percorrer as ruas que levavam ao restaurante, inútil, tudo fechado, pensou em ir até a casa dela, entretanto, ao olhar para o relógio desistiu da idéia.

Ainda vagou por mais algumas ruas antes de chegar em casa. Um sentimento ruim lhe assomava o peito e não permitiu que dormisse o resto da noite, talvez fosse um pressentimento. Acreditava que o coração era capaz de pressentir o que se passava com os corações ligados a ele.

Acordou num sobressalto, novamente o homem, o sangue, a mulher... Um sonho, um pesadelo, apesar de não se lembrar de ter dormido, tudo não passou de um pesadelo. Levantou-se. Desceu as escadas desorientado, levado pelo som de um choro distante que se tornava cada vez mais próximo a cada degrau que descia. Uma dor insuportável lhe invadiu o peito e o deixou tonto. Suas pernas vacilaram e caiu sentado sobre os degraus, ninguém havia dito nada, mas ele podia sentir dentro do mais profundo do ser. Era sua amada, mas não compreendia. Roubaram a vida de sua noiva e sentia-se culpado por isso.

A dor se tornou mais forte e não pôde conter o grito que o vento levou aos ouvidos de toda a vizinhança.

O relógio marcava dez horas e ele ainda continuava parado no mesmo lugar. O enterro já iria sair, a movimentação pela casa era grande e as insistentes batidas na porta foram inúteis, pois ele nada ouvia e nada via a não ser aquela imagem horripilante a sua frente, que chorava junto com ele e que parecia sentir a mesma dor. O relógio continuava trabalhando junto com o tempo, a movimentação na casa foi cessando aos poucos, o sol que brilhava na janela daquele melancólico quarto foi embora e deu lugar a lua e ele permanecia ali, estático, a fitar um reflexo no espelho.

Dany Ziroldo
Enviado por Dany Ziroldo em 16/07/2007
Reeditado em 09/01/2009
Código do texto: T567125
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