Quase todos brincam comigo

“Por amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça.”

(Fernando Pessoa)

Quase todos brincam comigo.

Eu sou.

Ouvindo aquela música sobre o colorido das pessoas.

Eu sou.

Aquelas que escondiam o seu colorido.

Eu sou.

Aquelas que ainda têm de esconder o seu colorido por medo, por temor.

A rua não é segura para o nosso colorido. Ouvi dizer que nós, os coloridos, ao darmos as mãos em público, temos uma atitude política.

Quase ninguém se importa com a dor de estar por aí, pelos caminhos da vida, destingindo-se. Escondo-me. Escondemo-nos. E o rumo é sempre o da iminência da morte.

Quase todos brincam comigo.

Esse ter de limitar-se, de anular-se é a minha loucura (que é a nossa, a dos coloridos): trancado em um apartamento; roupas a lavar; louça a secar; poeira por sobre os móveis. Será que hoje, quando eu sair desse apartamento-claustro poderei ser mais cor, posso ter mais cor, poderia expressar a minha cor?

No cinema, sou vazio de cor. Na escola, querem-me acinzentar. No espaço público...

Quase todos brincam comigo como se eu fosse uma fruta apodrecida, um calçado furado.

Lágrima (uma) escorre, agora, por essa pele áspera, por esse nariz grande. Dirijo-me ao relicário que possuo em casa (São Sebastião, Santa Luzia, Iemanjá, Buda, Preta Velha) e peço ajuda para desanuviar o azedo das minhas palavras, para colorir o meu rosto cansado de furta cor. Peço para ser pluma e pedra ao mesmo tempo. Peço para que os que brincam comigo entenderem que isso não se chama brincadeira. Que isso faz com que eu me torne um pedaço morto de ser humano. Peço que cheguem visitas boas ao meu coração.

Quase todos brincam comigo, mas lutarei para ser um ancoradouro de cores.