Venha

“Esta canção não é mais que mais uma canção

Quem dera fosse uma declaração de amor

Romântica, sem procurar a justa forma

Do que lhe vem de forma assim tão caudalosa

Te amo,

te amo,

eternamente te amo.”

(Iolanda, Pablo Milanés e Chico Buarque)

Eusébio: “Tu podes não acreditar. E quem acredita em alguém que nunca se tocou os dedos? Digo-te: as palavras são exume do verdadeiro olor de encanto. Tá amargo viver aí? Aqui também, por mais que doceirias facilitem o meu cotidiano. Lambuzo-me nas pequenas coisas do dia a dia. Será em vão essa madrugada insone escrevendo-te essa carta? Esse cinzeiro entornando prumos com asas; seria ele em vão? Certa vez, num desses anos próximos aos dezenove anos, eu sentira um frio enorme na barriga diante de uma conversa que me parecia ensolarada (as palavras a transmutarem-se em raios de sol). Algumas pessoas insistiam em dizer que isso se chama digestão. Eu acho que é paixão. Engraçado esses dois “ão” antagônicos dessas duas palavras que representam duas percepções diferentes das coisas, né? Nunca creia no que os outros te dizem; tu quem deves ter certeza absoluta dos processos de tuas entranhas. Venho sentindo, há alguns meses, o mesmo frio na barriga. Embora eu saiba-me muito (e esses anos todos de terapia serviram pra alguma coisa), vacilo um tanto na coragem de desvendar a barriga fervilhada: digestão, ou paixão? E aí acabo idealizando. Não são de credos idealizados que abarrotamos nossos dias? Procuro por uma permissão no agora e no depois. Uma permissão somente minha e não tua. Tu serás brisa e eu serei tempestade. Comecemos pelas luzes: eu te espraio minha declaração de paixão e tu dizes sim, ou não. Dependendo da tua resposta, eu expulso-me dessas terras geladas em que moro e tu me esperas nas areias mornas no sem fim de lá onde vives.”

Amâncio: “A vida anda corrida, por isso somente consegui enviar um telegrama e não uma carta. Desculpa. Sim. Eu levo chuva doce procê. Venha. Buscamos um ao outro com lábios abertos. O seu movimento na barriga não tem nada a ver com digestão. É paixão; a mesma que sinto por você. Seremos raios de sol um para o outro, porque nos sabemos sóis completos e não aquela coisa “morna e ingênua que vai ficando no caminho” a que chamam de metades da laranja. Aceito o seu “ão” de paixão, não só pelo sentimento, mas, sobretudo, porque teu ser é de palavras, e por palavras, é pelas palavras e é com palavras.”