Um salve aos anjos de asas negras

“A luta de classes jamais se poderia desenvolver em um formigueiro” (Ralph Linton)

Um gramado. A grama alta, movediça, há muito sem um jardineiro que afagasse suas molas e, trepidante, aparasse seus desígnios biológicos. Ele deita-se no gramado. Os olhos fixos no céu de verão.

As três marias, é a única indicação que pode ver. Podia pensar que tão logo anjos desceriam ao som de clarins. Acima de sua cabeça, apenas terra (solavanco de sangue). Podia pensar que o anjo era ele.

E assim o faz. Afasta as pernas um tantinho, posta os braços um pouco em alinho ao pescoço. E começa a voar.

São os mesmos fios elétricos que ele vira serem colocados nos postes, são as mesmas casas amarelinhas de telhas antigas. Ele lembra, tem boa memória. Podia pensar que em outra vida fora elefante. Podia lembrar-se ainda. Porque as pedras pontiagudas que formavam aquela rua eram as mesmas que formavam aquela ladeira, eram as mesmas que formavam aquelas veias, eram as mesmas...

_Eu vi essas pedras sendo colocadas sobre a terra dura, eu vi a rua a se formar, eu vi os negros a bater nas pedras até afundarem-nas (suor, sangue).

Ele perguntava-se o porquê dos homens que construíram-montaram aquelas ruas eram negros. Podia imaginar brancos realizando tal tarefa.

_Eu vi negros cavarem poços nessa mesma terra-sanguinolenta, deixando-a temperada com sal e lágrimas e cinzas de palha.

Para as pessoas daquela cidade, negros tinham uma função vital: cavoucar. Não se importavam em refletir que das casas simples, de luz parva-de tocos de vela-podiam existir seres humanos, com esperanças e frustrações; com o mesmo código genético que o delas.

Seguiam na luz pouco clara, mas luz. Seguiam como tatus, mas seguiam porque existiam. Seguiam como putinhas e ladrões na percepção dos de bem daquela cidade.

Mas não se apagavam.

Ele deitado no gramado. Podia pensar em contratar um negro para que no dia seguinte a grama fosse cortada. Podia ir à missa do domingo próximo e repetir ladainhas, num brotar mecânico de palavras santas pedindo graças ao bom Deus, à madre Igreja, aos bispos e presbíteros. Podia chorar sozinho naquela noite, cabeça recostada no peito ainda jovem, grama a roçar suas costas.

Ao invés disso, ele fechou as pernas, arredou as mãos, levantou-se do chão, entrou em sua casa e então...quis ser perdoado por todos os mortos e vivos negros, quis que a cidadezinha fosse perjurada pelos anos a fio de racismo.

Ouviu-se durante toda a madrugada um som rútilo, misto de choro e hélice, misto de força e coragem-um canto de savana invadida. Sentiu-se durante toda a madrugada um cheiro de verde.

E na manhã seguinte todas as pessoas daquela cidade fofocaram sobre o jovem maluco que cortara a grama de seu quintal na última madrugada e quebrara a paz do sono santo.

E ele-o jovem-embarcou no primeiro ônibus da manhã, rumo a não se sabe onde. Deixara um bilhete nas portas de algumas casas daquela cidade antes de rumar ao desconhecido: “Salve os anjos de asas negras!”

A população da cidadezinha podia pensar que o jovem fosse um ser sensato, mas preferiam chamá-lo de veadinho, bichinha, mariquinha, quiçá, de comunista comedor de criancinhas.