FIM DE SÉCULO

Milton Pires

Os finais dos séculos trazem sempre as fantasias sobre “o fim do mundo”. Em 1999 não foi diferente.

Essa foi a última coisa em que o sujeito pensou antes de se deitar. Deitou-se esgotado, cansado….Deitou-se mais uma vez naquele sofá que mais bem ficaria colocado na sala de espera de uma repartição pública.

Lá fora uma tempestade caía. O Hospital inteiro, a Santa Casa toda, estava em silêncio. Só da Unidade de Terapia Intensiva ainda vinha o som monótono dos respiradores, daquelas máquinas que, como todas as outras, não tem vida nenhuma mas que naquele momento são a própria vida...esse fio de vida que prende ainda neste mundo os que não podem mais viver aqui mas ainda não conseguiram partir.

Quando o telefone tocou o sujeito sabia que era pra ele. Mais do que isso, sabia que a chamada implicava, além de se levantar, atravessar o hospital todo até outro pavilhão, até outra enfermaria, onde ficavam os recuperados de cirurgias cardíacas.

Desligou o telefone de mau humor e partiu. A medida que caminhava, sentia que o chão tornava-se escorregadio. Agora já percebia que “lá fora” uivava o vento terrível das noites do inverno de Porto Alegre e o próprio caminho a ser feito parecia diferente. Já não era o mesmo hospital das outras vezes. Os corredores tinham o pé direito muito, muito mais alto. As paredes, até então de concreto, agora revestiam-se de madeira. Crucifixos enormes e pesados colocados com intervalos de dez, talvez vinte metros, estavam em todas elas. Não havia mais luz elétrica – eram velas que iluminavam tudo.

O médico não caminhava mais - deslizava. Movimentava-se de uma maneira intermediária entre a corrida e o voo. Quase não tocava os pés com o chão e, acima de tudo, nunca conseguia parar. Chocava-se com paredes, com corredores e paredes sem fim, sem chegar a lugar nenhum e, aos poucos, percebeu projetadas nelas as primeiras cenas da sua vida. Viu-se como criança na década de 1970 brincando com seus irmãos e chorou com as imagens dos castigos infligidos pelo pai, também ele um médico, também ele com tantos problemas...Sorriu quando viu-se na cena do primeiro beijo com uma moça até hoje tão estranha ...tão bonita...Chorou outra vez ao ver a imagem do avô morrendo na sua frente logo depois do início da faculdade de Medicina e misturou estas mesmas lágrimas com sorrisos ao ver-se com seu primeiro filho nos braços…

As imagens se sucediam, se atropelavam e, já fora de sequência, se misturavam até o ponto em que aquela que era a história da sua própria vida perdeu seu início...esqueceu seu meio, apagou seu fim…

A velocidade do médico diminuiu, o vento parou e não mais se ouviam trovões e nem mesmo a chuva...Seu corpo era cada vez mais leve ...Agora ele já tinha certeza que flutuava no ar...Não tocava mais no chão, não estava mais no hospital, não estava mais ali..

para querida Maria Amélia…

agosto de 2016.

cardiopires
Enviado por cardiopires em 09/08/2016
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