AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 01 - O LITERATO

Ao registrar sua filha como Maria Anja de Conhém, o pai deixava claro que nunca dera fé na história de que anjos não tem sexo. O sobrenome deveria ser o mesmo que o seu: Silva, porém, detestava seu nome de família e achava que a pequena tinha de ser marcada pela maneira como veio ao mundo, ou seja, de conhém, de esgueio, nem bem sentada, nem virada, dando um trabalhão e quase matando a mãe no parto.

A pequena nascera com os olhinhos espichados, e no começo todos achavam que isso se devia ao trauma, na saída turbulenta do ventre da mãe; no entanto, com o passar do tempo, seus traços foram se acentuando e tomando um formato bem parecido ao do índio Grajaú, que se acoitara, durante um tempo, nas terras do pai, ajudando no roçado. Quando ficou claro que o silvícola, além de semear as terras, semeara também a mãe de Maria Anja, o pai, indignado, enjeitou a filha e a entregou a uns ciganos, que pela região passavam, a caminho da capital.

Angelita, como era conhecida entre seus pares, tornou-se bela mestiça, embora um tanto fraca dos miolos, e não demorou a engravidar, dando à luz seu único filho e tornando-se estéril após. O menino nasceu franzino, feinho, mas ela o antevia já formado, homenzarrão, importante, tão bacana quanto os galãs das novelas, que tanto adorava.

Trabalhando como quiromante (fajuta) em evento regional, pôde assistir a uma palestra, que a impressionou muito. O palestrante, apresentado como insigne literato Ariano Suassuna, era inteligente, engraçado, importante . . . , enfim, tudo que seu filho deveria ser. Tentou gravar na memória o nome, mas a cabeça não ajudava. Somente o som lhe assomava à ideia (ine, ato, una). Dias após, ao passar pelo centro, viu o Cine Teatro Grauna.

Pronto! Era isso! Esse seria o nome de seu menino.

O oficial do cartório negaceou o quanto pôde, mas Angelita insistiu tanto, que ele cedeu.

O garoto cresceu com o fardo de tal nome e de não ter pai declarado, em sua certidão.

Na escola, as professoras evitavam os dois primeiros nomes, chamando-o de Grauna, o que gerava apelidos pejorativos, como chupim, pretinha ou bicudinha. Pra piorar a situação, ele nascera trocado, como dizia seu único amigo e confidente. Grauna tinha corpo de homem, mas sua alma era, totalmente, feminina; e seu gestos ou atitudes deixavam isso bem claro. Assim que atingiu a maioridade, fez o que pôde para deixar a pequena povoação, até que conseguiu ser aprovado em concurso, e partiu para cidade grande, onde esperava começar vida nova.

Teve parcial sucesso na empreita, conseguindo certa autonomia e respeito dos colegas, mas carregar seu nome, gênero e trejeito, sem ser notado, era difícil. Passou a sublimar suas aspirações, escrevendo contos e crônicas. E não é que o rapaz desempenhava bem no papel?

A maioria de seus textos era composta por contos de amor. Ele tomava muito cuidado em não denotar sua preferência por marmanjos de gogó saliente, tentando pintar protagonistas com rostos e corpos sensuais, mas sempre acabava escorregando, em algum ponto da trama, e avacalhando com a sutileza das beldades. Mesmo assim fez sucesso.

Seus livretos vendiam como peixe na semana santa, e o nome “Grauna” passou a ser conhecido pra todo lado. Só que todos acreditavam tratar-se de uma mulher. Ele não pretendia se expor, nem desejava a fama, mas apreciava o dim dim que aliviava a vivencia.

Porém, era grande o desejo de assumir-se fêmea, e surgiu a oportunidade perfeita.

A Academia Estadual de Letras da região, ciente da qualidade de suas obras e de seu sucesso no mercado literário, elegeu-o membro honorário, convidando-o a assumir seu posto, receber a insígnia acadêmica e estendendo o convite à sua mãe, que, orgulhosa, viajou de sua terrinha em segredo, para surpreender seu filho, aparecendo, de chofre, na cerimônia.

Apenas no dia anterior receberam a certidão de nascimento, indicando o nome completo e gênero de Grauna. Mortificados, não entendiam se aquilo era brincadeira ou insanidade.

No dia seguinte, com a presença da imprensa e diante dos apreensivos imortais, chegou o homenageado, de terninho cor de rosa, botinha de salto alto, batom, rabo de cavalo, cílios e unhas postiças, braço dado com negão enorme, apelidado Gogão (cujo gogó emparelhava com o queixo). Quando o locutor anunciou-o como CINE TEATRO GRAUNA, a risada foi geral, e enquanto mãe e filho se olhavam, mutuamente, com os olhos arregalados, o cochicho corria:

- Será que ele vai preferir esse terninho, ao invés do fardão?

- Tanto faz! O que me incomoda é aquele gogó enorme. É de provocar pesadelos.

Após leve desmaio, Angelita encarou a nova realidade. Grauna vencera, com glamour!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 19/08/2016
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