AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 02 - O IMORTAL

Início dos anos rebeldes da década de sessenta, ainda no século passado.

Em meio ao burburinho da contracultura e intensas manifestações artísticas, chega a São Paulo um acreano ambicioso. Além da roupa do corpo, apenas mais um terninho surrado, camisa puída e gravatinha de barbante, enfiadas numa trouxa de saco, que durante a viagem de oito dias lhe servira de travesseiro, na dureza da caçamba do caminhão capenga, cheio de toras de madeira. Chegara sujo, faminto, assustado com a agitação da cidade grande.

Pasmaceira braba, olhos arregalados, boca aberta, pernas travadas, sem ter pra onde ir.

Porém, como sempre, após o espanto a determinação se impõe, e Joano Lindauro (era seu nome) resolveu bater de porta em porta, procurando serviço e abrigo. Depois de muitos narizes torcidos, muitos nãos e uma detenção por vadiagem, achou uma alma compreensiva, um conterrâneo, que como ele, chegara ali quinze anos antes, e desfrutava de bom emprego, como zelador de grande condomínio. Mostrou o único documento que portava: uma certidão de nascimento quase ilegível, mas mesmo assim conseguiu ser admitido como faxineiro, morando numa mini kitchnet, sita no subsolo, num cantinho da garagem, ao lado do depósito de lixo.

Aos poucos foi descobrindo que para se dar bem naquele lugar, teria de aprender a ler e escrever, fazer contas, vestir-se na pinta, falar direito e saber conversar. Cursou o Mobral, fez o supletivo, caprichou na aparência e prestava muita atenção nos diálogos alheios, tentando agir do mesmo modo. Demorou um bocado, mas ao cabo de alguns anos estava mudado, parecia outra pessoa. Quem o tivesse conhecido antes e com ele cruzasse na rua, não o reconheceria.

Passou a frequentar cinema, teatro, shows variados, e, quando surgiu a oportunidade, tornou-se ator (amador, é óbvio), trocou o emprego de faxineiro pelo de bilheteiro da casa de espetáculos, e passou a escrever roteiros, contos, crônicas e poesias. Seus enredos e tramas não chegavam a ser péssimos, senão passáveis; todavia, a qualidade do texto era sofrível.

Logo de cara já antipatizara com a gramática. Só em ler a palavra já sentia náusea, mas entender os acidentes, as figuras de linguagem, a concordância, ortografia, parecia conversa de louco. Por mais que tivesse se aplicado nos estudos, sofria ao tentar estruturar seus textos. Ao mesmo tempo em que adorava inventar estórias, suava em bicas ao tentar dar-lhes forma e sequência compreensível aos leitores. Isso, quando conseguia acertar as palavras.

Amigos, conhecidos e colegas o incentivavam, elevando os (raros) aspectos positivos de suas obras, mas evitando desanimá-lo com críticas às malfadadas linhas. Ocorre que críticas têm por finalidade principal aprimorar uma obra ou orientar o autor, e isso não estava acontecendo com o entusiasmado escritor, que, sentindo-se capaz de ombrear com os grandes nomes da literatura pátria, decidiu concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.

Informou-se a respeito, soube que teria de enviar um currículo e amostragem de suas obras. Soube, também, que o presidente era Austregésilo de Athayde. Não conseguia nem dizer direito tal nome, e resolveu mudar o seu para algo mais chiquetudo, Por sugestão de um amigo, passou a assinar JOHN LINDO, e fazia biquinho ao pronunciar seu pseudônimo.

Foi, pessoalmente, entregar todo o material, e fazia questão de mostrar o protocolo.

Muitos perpassaram os olhos pelo “CURRICO ALTORAL”, o poema “VASSILASSÃO”, o conto “O FURICO DAS KENGA”, que iniciava com a frase explicativa: Os furicos são os anos das náldegas bundais; além da crônica: “ENTRE MIM, VÓIS E NÓIS, NUM Á DEFERENÇA.”

Riram a valer da cacografia, mas houve quem sentisse pena em ter de desqualificar todo o esforço do simplório personagem. Em carta muito educada e suave, deixaram claro que sua candidatura fora indeferida. Ele levou dois dias, até entender o que era indeferimento.

Para amainar a tristeza do coitado, levaram-no a uma boate nova, cheia das nove horas, que, realmente, o agradou muito. Ao olhar na parede, viu uma coroa de louros, com desenho abstrato de duas nádegas e as letras ABL. Exclamou alto:

- Academia Brasileira de letras?

- Não! Respondeu o barman. – Agremiação de bocós e lolós! Quer se tornar sócio?

Não teve dúvida alguma. Fez a carteirinha na hora e já pagou a primeira anuidade.

A cada um que encontrava, dali por diante, exibia o “documento” à altura dos olhos do interlocutor, rapidamente, guardando-o em seguida, crendo com isso convencer a todos sobre sua imortalidade acadêmica. Como um revés do samba de Nelson Sargento, todos fingiam acreditar, enquanto ele fingia amar a situação de ser, sem nunca ter sido.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 21/08/2016
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