EU TENHO UMA AMIGA

Tenho uma amiga! Melhor dizendo, tenho uma AMIGA! Letra maiúscula e exclamação. Na vida que acontece e nos leva de roldão pra todo lado, tenho, reconheço, não uma, mas algumas amigas, e com elas cambio valores essenciais à alma, nas conversas, reflexões, risadas, considerações e mais outras expressões personais, que vêm e vão a todo momento.

Tenho, porém, uma amiga arraigada no imo, cuja amizade, creio, nasceu ou surgiu ao primeiro raio da primeira aurora matutina de todos os tempos, quando o mundo ainda era uma concepção dos mentores siderais e o caos prevalecia, em meio à química primeva da vida.

Sou um neófito no conhecimento dos mecanismos existenciais, e sigo, filosoficamente, uma trilha mal demarcada, apenas suposta ou sugerida por sensitivos, que delineiam mundos etéreos ou fluídicos, onde o tempo se conta em séculos ou milênios, e a realidade física em que estamos imersos, é manipulada à conta de escola de adestramento. É algo que faz muito sentido, mas carece de concreta autenticidade, por se manter à sombra do véu de Ísis.

Creio, em meu íntimo, que esse é um caminho bem fundamentado, ainda que suposto.

Dessa crença retiro a proverbial certeza de que essa amiga vestiu um corpo de carne, em tempos e espaços contíguos à minha própria experiência carnal, para que convivêssemos, da forma como desse, apoiando-nos, mutuamente, ao longo das veredas cotidianas da crosta.

Desde tempos imemoriais, ensinaram-nos ou aos nossos antepassados, que a mente sideral, eterna, imperturbável, onde a chama de nossa movimentação impera, apenas projeta minúscula porção de sua capacidade sensorial e manifestação em nosso cérebro somático, e isso limita, tremendamente, nossa percepção, fazendo-nos esquecer tudo que tenhamos vivido antes de entrarmos no ventre materno. Nesse imediatismo compulsório, só a realidade desses fantasmas, constituídos de músculos e ossos, cujo sangue permanece fluindo nas artérias, é a que conseguimos alcançar e na qual conseguimos subsistir, precariamente.

Nessa mesma realidade fantasmagórica concreta despertei, instintivamente, cerca de seis décadas atrás, mas comecei a ensaiar algum entrosamento social (que se revelou nulo) quinze ou dezesseis anos depois. E foi então que me deparei com essa alma irmã.

Aos trancos e barrancos fomos nos inteirando de nossas afinidades, em ideais, ideias e algumas características pessoais, e mesmo que ainda restassem muitas divergências, também, sempre predominou a bem querença, a afetividade dativa, que tudo espraia e nada retém. Sei, hoje, de minhas fraquezas e descaminhos, mas tive de errar muito, no pó das ilusões materiais, até que pressentisse o apelo da razão e principiasse a subjugar o ego. No meio da estrada, ao encontrar a fatídica pedra de Drumond, passei a valorizar o que desprezava, lembrar as perdas e malfeitos, minimizar expectativas e aquietar os sentidos. E da bagunça que ainda não logrei arrumar, pra valer, ressurgiu, incólume, a amizade de décadas atrás, de existências atrás, de quando ainda não existia o atrás, o adiante e nem o tempo.

Numa ocasião, estando em um evento com minha sócia (à época), encontrei conhecido, que era colega de profissão, e a apresentei a ele. Com um riso malicioso mal disfarçado, o tal agarrou uma garota ao seu lado, e disse que ela também era sua sócia, e piscou o olho. Afora o constrangimento causado à minha parceira de negócios, vislumbrei, naquele indivíduo e seu jeito estereotipado, a discrepância brutal entre minha maneira de ver o mundo e a da maioria.

Cito tal ocorrência, para deixar claro que quando falo dessa amizade, falo de algo tão sublime, que a simples conjetura menos feliz do vulgo, direcionando o assunto para a volúpia de alguns instantes, mesmo que continuados, conspurcaria a beleza que flui das entranhas. É preciso atestar que o sexo sempre teve papel primordial em minhas tentativas de conciliar tudo que influencia a jornada vital, mas não compactuo com o desleixo da imposição desenfreada.

Assim como o sexo, ao meu ver, prescinde de estímulos viciantes, desregramento e os tantos ícones fetichistas infantis, que perseveram entre patetas de carteirinha, igualmente, a amizade prescinde de convenções, demonstrações, compromissos ou rotina presencial. Se há necessidade de adequação, formalismo, cuidado, se causa enfado ou cansaço, se gera uma suspeita ou produz indelicadeza, está longe de poder se conceituar como verdadeira amizade.

Tenho poucos amigos e amigas, e com todos ajo da melhor forma possível.

Tenho, porém, uma amiga. E através dela, de nossas conversas, consigo espiar aquele horizonte que se estende além dos sentidos, o amanhã, o ontem, o desconhecido; e no meio de tudo isso, rimos, choramos, mas o que importa é que o fazemos juntos, ainda que distantes.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 29/08/2016
Código do texto: T5743873
Classificação de conteúdo: seguro