AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 05 - CONTANDO CAUSOS

Folheto, Cordel, Novela de Feira. Nomes de uma arte pouco valorizada.

Do mesmo modo como, da Idade Média e até a Renascença, entre as obras eruditas de grandes mestres da música, surgiram inúmeras operetas e revistas musicais variadas, feitas para apreciação do povo inculto, e por isso mesmo simplificadas e alegres, a literatura teve um caminho paralelo semelhante, mesmo que em ambientes, ocasiões e condições diferentes.

Puxando a brasa para nossa sardinha, lembremos que Portugal nos ensinou a valorizar a literatura popular, que na boa terrinha era exibida aos transeuntes em cordéis, cordinhas, nas quais eram pendurados os livretos, com estórias ou poemas simples e, geralmente, cômicos.

A região nordestina foi a primeira a adotar o costume do folheto de rua ou novela de feira, que trazia causos, poesias, dramas e chacotas de figuras conhecidas ou acontecimentos marcantes, abordados de forma rimada e irônica, pendendo para a comédia ou dramalhão. Hoje é possível encontrar o cordel em, praticamente, todo o país, mas, principalmente, pelo sertão ou periferia de grandes cidades de Minas, São Paulo e Rio. E foi, justamente, lá pelos arrabaldes de uma cidade movimentada das Minas Gerais, que se passou o que contarei.

Emerenciano, caboclo criado em fazenda leiteira, era filho de um casal nordestino, que fora trazido pelo patrão, muitos anos antes, para ali viver e trabalhar. A mãe era cozinheira de mão cheia, e o pai, além da lida com o gado, era violeiro, cantador e poeta. Ambos exerceram influência significativa na vida do filho, que resolveu estudar, foi pra cidade, virou cozinheiro profissional e atacava de escritor, no pouco tempo que tinha, entre a escola e o trabalho.

Aprendera os desafios, os versos de aprontação, as prosas calculadas, o gracejo rimado com o pai, mas queria saber escrever como os escritores famosos, que constavam dos livros.

O problema era que os literatos escreviam, segundo o rapaz, dizendo sem querer dizer, enrolando as palavras nos entretantos, para depois desaguar num finalmente duvidoso, que ele tinha dificuldade em entender, mas achava muito bonito. Lia e relia contos, crônicas, poesias, tentando pegar o jeito, mas na hora de rabiscar o papel, saía tudo diferente. Perseverante que era, todavia, prosseguiu na empreita e até recebeu ajuda do patrão, que pendurava alguns de seus trabalhos no mural do restaurante. Isso lhe rendeu elogios de boa parte dos fregueses.

Incentivado por essas demonstrações, passou a distribuir por todo o comércio vizinho os seus “PEDACINHOS DE PROSA”, que se constituíam de panfletos com pequenos contos.

Suava para conseguir escrever direito, atentando à ortografia, concordância e buscando usar palavras ou expressões inteligentes, para fazer boa figura, mas só conseguia minguado retorno de admiradores, porque a maioria parecia nem entender o que escrevia.

Foi então que recebeu a visita do pai, que com ele foi a uma feira, num sábado, onde o rapaz costumava distribuir seus textos. De cada dez passantes, um pegava o papel para ler, mas só enfiava no bolso e seguia adiante. O velho olhou a cara triste do filho, pegou a viola e sentou num caixote, enquanto atacava uns acordes bem derramados, pra todo mundo ouvir.

Começou a juntar gente, o velho passou a entoar um causo cantado, falando de um ladrão de galinha, cuja mulher (penosa das braba) o fez de boi manso. O gatuno, sentindo os cornos espremerem seus miolos, passou a mugir, andar de quatro, e acabou puxando arado. A plateia ria e aplaudia, enquanto pegava os planfletos do rapaz e saía feliz. A lição serviu.

Emerenciano deixou de lado os literatos, comprou chapéu de couro com barbichado, um gibão cru de bode, guarda peito e sandália. Deixou crescer a barba, treinou o xaxado, tomou aulas de viola, só pra saber dedilhar três ou quatro posições e deitou o cabelo no feitio de uns causos bem pitorescos, apimentados e esculhambados. Descobriu-se um expert nesse tipo de trabalho, conseguindo muitos admiradores, patrocinadores e, o mais importante, leitores. Teve seu primeiro livreto publicado, que vendeu mais que pinga em bar de gafieira, permitindo que o feliz autor largasse o emprego e vivesse de viver escrevinhando, como gostava de dizer. Foi para a capital, enricou, ficou famoso, aparecia na TV e no rádio, dando entrevista.

Nos bastidores de um programa em que foi ovacionado, recebeu a oferta de se juntar aos intelectuais de uma academia literária local. De imediato pensou: “É a glória!’, mas antes de responder ao interlocutor, coçou a barba malhada e perguntou: - Por que o convite?

- Ah, o senhor é muito famoso, e pode trazer mais público, mais leitores pra nós.

A coisa se invertera. Agora ele era o chamariz, o bom da boca. Enjeitou a proposta e, no dia seguinte já estava numa feira, contando causos, fazendo o povo rir e enchendo os bolsos.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 02/09/2016
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