"O Assombroso Poder da Mente" = Histórias de Amor Safado= Reedição.

Até hoje eu não sei ao certo se aquela cidadezinha minúscula do interior do Paraná se chamava, ou se chama, Jandira do Sul ou Jandaia do Sul. O que não me esqueço nunca foi do quanto nos divertimos por lá. Eu e toda minha turma de vendedores que se hospedou no acho que único hotel da cidade naquela época remota.
A dona do hotel, uma senhora uns quinze centímetros maior que uma anã, e mais magra do que orçamento de trabalhador com salário mínimo, era a simpatia em pessoa. O que não a impediu que, quando necessário, tivesse justiçado com as próprias mãos os três assassinos de um de seus irmãos.
Um dos colegas, o Tadeu, era dessas pessoas inteligentíssimas, com uma memória assombrosa e uma tremenda capacidade de atrair simpatia e de conquistar confiança de quem acabava de vê-lo. Algumas colegas cantavam muito bem, outros colegas sabiam algum tipo de mágica ou truques com cartas, e muitos de nós tínhamos outros tipos de habilidade. O ponto de união ente todos nós, homens e mulheres da turma, era a safadeza latente. Todo mundo muito a fim de esbórnia no fim do expediente. Expediente que, aliás, cada dia terminava mais cedo.
À noite, no saguãozinho do hotel, todo mundo reunido, incluindo a dona e todos os empregados do estabelecimento, a cerveja, as piadas, as palhaçadas, as cantorias, corriam soltas até altas horas.
Uma das brincadeiras que fez o maior sucesso e que por causa dela pegamos, eu e Tadeu, fama de mágicos e essa fama se espalhou pela cidade, era a da adivinhação.
Tadeu ia para a cozinha do hotel, que não ficava a mais de cinco metros do saguão, e eu perguntava em voz alta:
- Tadeu, de que lado está o garfo?
- Do lado direito, Fernando.- gritava ele.
A dona e os empregados do hotel arregalavam os olhos. Espantados de verdade.
- A faca, Tadeu, está de que lado da cadeira.
- Está do lado esquerdo, colega.
Mais admiração.
- E onde acharei o garfo agora, Tadeu?
- Entre a colher e a faca, Fernando.
Tanto eu quanto Tadeu mantínhamos a maior seriedade nas fisionomias ao explicar que usávamos um poder da mente, que era a telepatia. Tanto o Tadeu quanto eu acertaríamos sempre, mesmo que um estivesse em São Paulo e outro no Paraná.
Um dos truques mais simples que existem, mas que ainda engana muita gente. Basta colocar a palavra que se quer adivinhada na mesma posição na frase. Por exemplo: “A faca, Tadeu, onde está?” . Na frase ela está à esquerda. E assim por diante.
Tadeu, mantendo aquela pose de mágico profissional, chamou-me ao palco:
- Senhoras e senhores, quero agora apresentar a pessoa que tem a maior capacidade telepática deste planeta. Com vocês, conosco, o insuperáááável Fernando.
Subi ao “palco”, que nada mais era que o primeiro degrau da escada que levava aos quartos de cima, e tive os olhos vendados com um pano preto, enquanto Tadeu explicava o porquê de aquele número poder ser realizado apenas uma vez por noite:
- O desgaste do telepata é muito grande. É enorme a energia que ele consome a cada vez que adivinha de verdade alguma coisa. Por isso, senhoras e senhores, apenas um número e, por favor, não insistam.
De olhos vendados e de costas para a “enorme platéia”, concentrei-me enquanto Tadeu pedia à dona do hotel seus documentos particulares.
- Meu caro colega de telepatia Fernando, concentre-se, concentre-se de verdade e diga-me os números do documento que tenho em minha mão direita.
Calculando mentalmente o tempo, fui dizendo, um a um, os números da carteira de identidade da mulher.
- Espetacular! Espantoso! Ele acertou todos os números!! Foi ou não foi, dona Maria?
- Foi sim senhor.
- Diga alto para que todos ouça, dona Maria, por favor.
A mulher gritou alegre:
- Ele acertou todos os números !!
- Agora, Fernando, eu quero saber: você continua bem vendado?
- Continuo.
- Diga alto, por favor.
- CONTINUO.
- Então diga-me todos os números do papelzinho que tenho em minha mão esquerda.
Eu disse e as palmas foram demoradas. Enquanto eu os dizia Tadeu ia mostrando cada um a uma das pessoas mais próximas.
Pra decorar os números da carteira de identidade de dona Maria eu a li três vezes, mas os números do CNJ eu tive que ler umas dez vezes antes de meu emocionante número.

Quando meu número acabou e tirei a venda, vi que uma das empregadas, uma moreninha muito da gostosinha, olhava-me como se visse um extra-terrestre ou um fantasma. Sorri para ela e a moça saiu correndo pros fundos do hotel.
- Pô, essa é boa...A arrumadeira ficou com medo de mim.- comentei com Tadeu.
- Ela está assustada desde que eu disse que você adivinha presente, passado e futuro. Deve ter alguma culpa no cartório.

Na manhã seguinte eu ia entrando no banheiro para o banho de todos os dias quando vi, pouco antes de cerrar a porta, a mocinha entrando em meu quarto para a arrumação que era a cargo dela.
Continuei espiando a porta de meu quarto e vi quando ela saiu de lá às pressas.
- Será que ela roubou alguma coisa?
Voltei ao quarto e vi que tudo que era meu estava em ordem. E o quarto todo arrumadinho. Deve ter sido a arrumação mais rápida de toda a vida dela.
Voltei ao banheiro, tomei meu banho e logo depois desci para o café da manhã.
Dona Maria veio toda cheia de salamaleques para o meu lado:
-Bom dia, seu Fernando. Dormiu bem? Sentiu muito calor? Essa noite foi um calor infernal, não é mesmo? O senhor gosta do café mais forte ou mais fraco?
Quase estranhei tanta solicitude, mas logo liguei as coisas e percebi que ela também estava com medo de meus “poderes” revelados na noite passada.
- Dona Maria, como se chama a mocinha que arruma o meu quarto?
- A Mariléia é quem arruma os quartos do andar onde o senhor está. Porquê?
- Porquê eu gostaria de ter uma conversa com ela. Uma conversa que pode ser muito boa pra ela.
- Deixe que eu mando ela conversar com o senhor. Pode ser à noite, depois que o senhor voltar do trabalho?
- Pode, sim senhora.

À noite, depois do meu banho do retorno, para tirar a poeirada imensa da cidade de cima de meu corpo, estava sentado na cama, enrolado ainda na toalha, quando ouvi discretas batidas na porta. Fiz igual vi nos filmes:
- Entre. – mas não foi um “entre” qualquer”. Foi um “entre” sonoro, pomposo, muito digno em seu som.
E ela entrou. Entrou, fechou a porta, me olhou com os olhinhos molhados de lágrimas e perguntou cheia de medo na voz:
- O senhor jura que nunca vai contar nada pra ninguém?
- Nada o que, minha filha?
- Ora, o senhor sabe muito bem. O senhor adivinha tudo. Eu juro que nunca mais faço isso e o senhor me promete que não conta nada a ninguém. O senhor promete? Eu faço tudo que o senhor quiser, juro que faço.
- Tudo mesmo?
- Tudo. Tudinho. Tudinho mesmo. O que o senhor quiser.
- Então passe a chave na porta e venha aqui.
Até hoje eu continuo intrigado com o que ela pode ter feito de tão errado que eu não podia contar pra ninguém. Comigo ela fez tudo certinho. E várias vezes.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 22/07/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T575563
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