"Sei Lá o Que Foi Aquilo" = Reminiscências Com Humor=


Naquele dia eu estava inspirado. Dirigindo o carro de uma colega, saindo de São Paulo com destino a Fernandópolis, ia contando meus casos e minhas piadas e fazendo um colega e duas colegas rirem muito.
Uma das colegas, além de vendedora durante o dia, reforçava os ganhos fazendo a vida no “La Licorne”, o ponto paulistano das prostitutas de alto luxo. A outra colega fazia tudo para mostrar que nada tinha a ver com a “piranha”. Era moça séria, bem educada, religiosa, toda cheia de não-me-toques. Mas ria com o mesmo estardalhaço da “perdida”. Ria perdidamente à medida em que as piadas iam ficando mais e mais pesadas., mais pornográficas, mais cheias de sacanagem grossa.
Tive que parar algumas vezes para que elas pudessem urinar no mato, à beira da estrada, de tanto que riam.
Para melhorar o ambiente e a gente rir mais ainda, a cada cidade que passávamos, noite adentro, o Plínio informava que tinha parentes ali. Não escapou uma única cidade, aldeia, ajuntamento de gente, que não tivesse parente do Plínio ali. Já estávamos rindo até do tamanho da parentada que o cara tinha mundo afora.
Quase chegando a Fernandópolis resolvemos dar uma última parada, em um posto de gasolina, para um lanche rápido e uma última urinada.
Ao manobrar o carro, um pangaré branco, tipo pele no osso mesmo, aproximou-se do carro e, sem a menor cerimônia ou receio, enfiou a cabeçorra pela janela do motorista, empurrando minha cabeça pra trás.
Mesmo naquela posição ingrata, com o pescoço esticado a ponto de olhar para o tero, não pude deixar de fazer a brincadeira:
- Parente seu, Plínio? Acho que quer falar contigo...
As moças, literalmente, passaram mal de tanto rir. Só o Plínio não achou tanta graça. E menos ainda quando descobrimos entre ele e o pangaré várias semelhanças: magros, brancos, queixos compridos, crinas mal cuidadas, um tanto quanto relaxados no jeito de ser. Enfim, só podiam ter parentesco próximo. Sem contar que os nomes dos dois começavam com p.
- Pangaré, este e o Plínio. Plínio, este é o Pangaré. Mas acho que vocês já se conhecem...
Saímos do carro e fomos em direção ao restaurante mixuruca do posto, e não é que o sofrido animal foi atrás da gente? Exatamente atrás do Plínio e no mesmo ritmo que ele. Lado a lado, como dois bons amigos.
A gente ria de ter que enxugar os olhos a todo instante:
- Aí tem coisa. Ou é parente ou é caso antigo.
Foi uma luta para o pangaré não entrar no restaurante. Tivemos que deixar o Plínio do lado de fora, cuidando do “parente”, prometendo trazer-lhe o que ele quisesse comprar.
A colega “piranha” foi solícita com Plínio:
- Plínio, fique aí trocando “causos” de família com o “panga” que eu trago um sanduíche pra você. Quer oferecer ao seu amigo também? Quem sabe um sanduíche de alfafa....Um suco de capim...

Saí do restaurante dirigindo em marcha lenta e o cavalo nos acompanhou. Fiquei com pena do bicho e dirigi em segunda por vários quilômetros.
- Plínio, acho que você vai ter que pedir quarto pra dois no hotel. Seu parente não quer desgrudar do carro.
- Pô, meu!! Acelera essa merda. Essa brincadeira já encheu...
- Não faça isso, Plínio...Pode ser recado de família, herança, morte da sogra, coisa boa, enfim. Olha lá o pouco caso com os parentes menos afortunados. Deus castiga.
Acelerei com vontade e o cavalo, coitado, disparou atrás da gente.
As moças se manifestaram:
- Não faça isso. O coitado pode morrer do coração correndo desse jeito.
- Acho que ele está é pedindo passagem. A língua dele está caída pra esquerda.
- Então dê passagem e vamos ver o que ele faz.
Diminui a velocidade e entrei no acostamento, mas sem parar o carro.
O cavalo nos ultrapassou e passou a trotar bem devagar na frente da Brasília. Cada vez mais devagar. Chegou a trotar quase parando e eu, por brincadeira, acompanhava-o de perto.
De repente o cavalo pareceu entrar em um nevoeiro e vimos sua figura ir sumindo à nossa frente, um tanto quanto depressa, apesar de suas patas se movimentarem do mesmo modo. Bem devagar.
Sentindo um forte arrepio na nuca, parei no acostamento, desci do carro e andei alguns metros até chegar à curva.
Na curva meus cabelos se arrepiaram inteiramente: um caminhão estava parado no meio da pista e de sua carroceria havia se deslocado uma coisa comprida, de metal, que teria entrado em nosso carro e matado a todos se tivéssemos chegado à curva em velocidade normal.
Depois de algum tempo, mais calmo, procurei pelo pangaré e não vi sinal dele. Perguntei então ao caminhoneiro, que a essa altura já providenciara sinalização com galhos de várias árvores na estrada, se tinha visto um cavalo branco passar por ele.
- Não. Não vi cavalo nenhum, moço. E olhe que seria difícil não ver, já que esse pedaço onde está o caminhão não tem acostamento.
Meu sangue gelou novamente. Se não fosse eu ter seguido, por brincadeira, o trote lento do pangaré, o carro teria recebido com tremendo impacto aquela coisa de metal, já que eu não teria mesmo como e para onde desviar. E não existia, nem existe ainda, freio que pare um carro em tão curto pedaço de estrada.
Fizemos o resto do percurso calados, assustados e rezando a Deus em agradecimento.
Ainda bem que as duas moças ficaram assustadas, não quiseram dormir sozinhas, e o Plínio, mais acostumado com bichos, ficou com a piranha. Eu, durante a madrugada, curti outros tipos de arrepios com a toda cheia de virtudes. Cada virtude...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 22/07/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T575598
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