AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 07 - CARRANCA, O VERSEIRO

Nome de batismo: Jesuíno Batista Londano. Apelido: Carranca. Profissão: Verseiro.

Desnecessário detalhar muito o histórico de Jesuíno, bastando apenas comentar que ao nascer, os pais evitavam mostrá-lo às visitas, para evitar o espanto com sua cara feia. Entre a criançada fazia sucesso, porque, nas brincadeiras, sempre fazia papel de monstro. Já na idade escolar, de tanto ser zoado e apanhar, aprendeu a se defender, e como não era nada franzino, bastava olhar feio com aquele carão e mostrar o punho, para fazer neguinho correr.

Chegou à adolescência, e à medida que seus hormônios faziam o sangue ferver, deu-se conta do quanto era feio. Daí vieram as fases reativas. Primeiro, a frustração de não ter uma cara comum ou atraente, depois, tristeza e reclusão, evitando se expor e correr o risco de ser repelido, desprezado pelas meninas; e, por fim, a revolta. Já que não podia ser o mocinho, seria o vilão, mas não um vilão qualquer. Iria se tornar um supervilão, arrasa-quarteirão.

Esmerou-se em dizer, a cada dez palavras, onze palavrões. Divertia-se em agir como cafajeste, desqualificando quase todos à sua volta e tratando as mulheres como coisa sem voz, sem raciocínio, sem vontade. Dizia-lhes obscenidades, impunha-lhes silêncio e exigia-lhes total submissão às suas vontades sensoriais. O camarada exagerava mesmo na dose.

Para sua surpresa (e de qualquer cidadão consciente), ao invés de ser mal visto, passou a ser respeitado por seus pares. As meninas (vejam só) começaram a disputá-lo, sem oferecer resistência ao seu jeito indecente. Aliás, tentavam imitá-lo no vestir, agir e falar.

Durante toda a adolescência e até a proximidade de seus trinta anos, o feio atraente viveu milhares de conquistas (leia-se aventuras sexuais), liderou seus amigos e colegas (uma horda de abobados que o idolatravam), mas gastou toda sua energia e capacidade, sem seguir qualquer objetivo, sem estudar, sem trabalhar, apenas curtindo e ganhando presentes. Porém, tudo tem um fim, e a juventude do sujeito já entrara no nível crítico. O primeiro sinal foi quando meninas mais novas lhe foram apresentadas, e ao invés de o chamarem de Carranca, apelido usual entre seus admiradores, trataram-no (todas, simultaneamente) por Seu Jesuíno.

Sua segurança começou a rolar ladeira abaixo, e não demorou para que fosse ficando cada vez mais só, até que se reconheceu como um indivíduo de meia idade, arranjou trabalho e voltou à antiga frustração de, sem a pujança juvenil, tornar-se um adulto feio e antipático.

Certo dia resolveu botar no papel o que lhe invadia a mente, escolhendo a forma rimada de uma poesia convencional. Eram frases simples, próprias de alguém com pouco estudo e leitura, mas que descreviam bem o estado d’alma que lhe aporrinhava as ideias. Uma colega do trabalho, ao passar por sua mesa, viu os versos e se encantou. Perguntou-lhe se era o autor, e tendo a confirmação, pediu-lhe que escrevesse algo romântico sobre ela mesma.

O gajo não se fez de rogado e tascou uns clichês açucarados, de rima fácil e cativante.

Foi o começo de uma nova fase em sua vida. Aquela foi a primeira de muitas mulheres que se apaixonaram por seus poemas, largaram-se em seus braços e o chamavam, fazendo biquinho, de Carranquinha. Esquecendo-se de suas canalhices pretéritas, o poetinha passou a se vestir como artista (para ele, boina e cachecol bastavam para torná-lo um galã) e declamava a todo tempo, falava cantando, fazia caras e bocas, olhar blasé e um ar de não tô nem aí.

Curtiu mais um bom período de gloriolas e pequenos triunfos, mas o tempo judia, e aos poucos, foi perdendo o cabelo, os dentes, a virilidade e a saúde. Só entendeu que estava velho e decrépito, quando se viu só, meio travado, pobre e carente. Revoltou-se, mais uma vez, e deu vazas à raiva, escrevendo num cartaz “ESTE MUNDO É UM INFERNO”. Saiu pelas ruas carregando esses dizeres, vestindo apenas um saco de farinha e descalço, arrastando-se mais que andando. Foi tomado por um profeta e viu-se cercado, em pouco tempo, de centenas de seguidores, que passaram a idolatrá-lo e ampará-lo, com o que havia de bom e de melhor.

Morreu gordo, dentadura de primeira, peruca natural, roupa de seda. O coração não teve como suportar tanta comilança do “guru”, e o defunto teve velório fino, aberto ao público, na câmara de vereadores, discurso do prefeito e cerimônia ecumênica com autoridades presentes.

Chegou na porta do céu e foi barrado por São Pedro, que o chamou de aproveitador.

- Pôxa, meu santo! Só o que fiz foi me virar pra sobreviver. Olha a cara que me deram!

Foi mandado pro purgatório e condenado a escrever versos de arrependimento; e dizem que está lá até hoje, porque quando está para vencer sua pena, descobrem alguma anjinha voando tonta, desvirtuada por suas estrofes. Boniteza lhe faltou, mas talento tinha de sobra.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 10/09/2016
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