AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 08 - O ORÁCULO

Este conto difere um tantinho assim dos demais por um detalhe pitoresco.

Iniciamos a trama com um personagem humano, mas terminamos com um buraco.

Tudo começa quando Délcio, estudante de direito, no final dos anos sessenta (século vinte, claro), resolveu se envolver com pessoal de esquerda e acabou fichado como comunista. Visitou o xilindró duas vezes, e quando saiu foi avisado pelo carcereiro, que a terceira vez ali seria derradeira. Assustou-se e, ao ver pela TV, que a polícia invadira uma casa em que se reunia o grupo rebelde, não esperou o próximo capítulo e se mandou pra bem longe. Resolveu ir pra uma cidadezinha do interior da Bahia, e por lá se instalou como pôde.

Com o pouco dinheirinho que levou, comprou um pedacinho judiado de terra, com mais pedra e cascalho que solo arável. Embora tivesse cultura eclética razoável, era um teórico sem nenhuma prática em qualquer atividade operacional. Por mais que tentasse usar conhecimento científico para fazer a minúscula propriedade produzir, nada dava certo. Para falar a verdade, ele não tinha a menor ideia do que empreendia, mesmo que acreditasse estar agindo certo.

Ao cabo de alguns anos, desistiu de ser agricultor e arranjou emprego como professor na escolinha da prefeitura. Nunca lhe pediram documentos, o que foi vantajoso, mas o salário mal dava pra comprar comida. Porém, com aulas particulares para crianças e adultos, logrou, enfim, garantir a subsistência. Dali a arranjar um rabo de saia e se ajuntar, foi um pulo.

Teve três filhos. O primeiro recebeu o nome de Trotski, as gêmeas que vieram a seguir, chamaram-se Olga e Helda. Infelizmente, a gente simples da região simplificou tais palavras, e os três passaram a ser, na prática, Trote, Orga e Erda, assim como Délcio virou Derço.

Por mais que o pai tentasse instruí-los, não queriam saber de estudar. Dormiam em cima dos livros e na carteira da escola. Falavam os próprios nomes do jeito caipira dos demais, e seu linguajar era o mais arrastado possível. A única coisa que apreciavam era caçar tatus.

Foi numa caçada que descobriram pequena gruta, num ponto distante da terra, com uma santinha dentro (suja, quebrada) e velas acesas em volta. Assustaram-se e foram, correndo, dar a notícia em casa. Quando Délcio os acompanhou até o local, encontrou uma velhinha ajoelhada, que lhe contou ter ouvido a voz da santinha, numa das vezes em que ali estivera, então vinha sempre rezar e acender uma vela. Disse-lhe, também, que outros já tinham ouvido a santa, e que muita gente costumava vir até ali fazer pedidos para a adorada.

Délcio se lembrou do Oráculo de Delfos, que ficava em uma caverna, na Grécia, e fazia previsões para aqueles que até ali chegavam, em troca de oferendas. Teve a brilhante ideia de dar um jeito pra santinha falar, de acordo com sua vontade, e com isso ganhar um bom troco.

Providenciou longo cabo de força, de sua casa até ali, fez uma série de ligações, do jeito que entendia, ligou sistema de som meio capenga e escondeu caixas acústicas no fundo da gruta, deixando o microfone atrás das pedras, a certa distância. No sábado à tarde, instalou-se no esconderijo, esperando os devotos, junto com Trote, seu filho, que queria saber o que era tudo aquilo. O pai esmerou-se na explicação, mas o rapaz não entendeu bulhufas.

Começou uma chuva fina, que penetrou no cafofo de Délcio sem problema. Em pouco tempo o abrigo mal feito do camarada estava encharcado, mas ele não arredou pé. Quando viu que se aproximava um casal, ligou o som e aproximou o microfone da boca, mas antes de se pronunciar, acabou eletrocutado e mortinho da silva. Trote, que a tudo assistia, não se abalou muito. Além do raciocínio, suas emoções também eram embotadas, e, tranquilamente, cavou um buraco, enterrou o pai e chamou a família pra fazer uma reza pra alma do defunto.

Nos anos que se seguiram, muitas pessoas continuaram a adorar a santinha quebrada, e quando comentavam sobre a gruta com Trote ou as gêmeas, diziam que o pai lhes contara ser aquilo um oraco. Não tardou a chamarem o local de Oraco do Derço. Só que, com o tempo, oraco foi se transformando em buraco, e hoje o Buraco do Derço é famoso na região.

Dizem que se alguém apronta alguma travessura, a santa manda um raio no pecador.

A história surgiu de acontecimento real. Um grupo de desocupados, querendo dar susto nos frequentadores da gruta, escondeu-se perto do antigo abrigo de Derço, e como ninguém retirou dali, desde seu falecimento, as gambiarras que foram instaladas, dois rapazes pisaram num pedaço de fio desencapado e ainda ligado ao cabo, meio enterrado. Não vieram a falecer, mas ficaram mais tontos do que já eram e se converteram em devotos, também.

A santinha quebrada do Buraco do Derço é poderosa.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 17/09/2016
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