AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 09 - AS GÊMEAS

Lucélia e Lucília eram gêmeas. Porém, em nada idênticas.

Lucélia nasceu primeiro, robusta, cabeluda, sorrindo e exibindo covinhas, olhos muito abertos, monopolizando a atenção de todos, que sorriam amarelo ao olhar para a irmã, mirrada e carequinha, chorona, precocemente afetada por icterícia. Páreo bem desequilibrado.

Ao longo da vida não foi diferente. A primeira se impunha, liderava, atraía e agradava, ao passo que a segunda pagava para não aparecer. Todavia, a sem gracinha era possuidora de inteligência sem igual, enquanto a outra não sabia fazer um “O” com o copo. Sentava nas primeiras cadeiras da classe e passou a ser hostilizada pelos aprontões do pedaço. Certo dia a cercaram, na saída da escola e lhe deram enorme surra. Lucélia, que viu tudo acontecer desde o início, só interviu quando a irmã já estava sangrando à beça, e pôs os agressores pra correr.

A genialidade da mana também a desagradava, mas viu no episódio uma oportunidade.

A vitimada, ao ser salva, sentiu-se amparada e não sabia como agradecer, mas é claro que sua salvadora já tinha tudo planejado na mente sórdida.

- Você é fraca e desengonçada. Não deve se expor, tirando nota alta na escola.

- Então como é que devo fazer?

- Seja você a burra e me deixe ser a inteligente. Ninguém mais vai lhe incomodar.

Dali pra frente, sem ninguém notar, trocaram os papéis. Uma fazia a lição, trabalhos e prova da outra. Lucélia tornou-se uma das primeiras da turma, enquanto a irmã sumia. Quando surgiu a oportunidade de participar de concurso regional de contos, Lucília escreveu uma obra prima, que foi enviada, é claro, em nome da maninha querida. Ganhou o primeiro lugar.

Prêmios, homenagens, holofotes, passaram a focar, cada vez mais a vigarista, que fazia a coitada produzir sempre mais, e usufruía das benesses da fama, reservando apenas algumas migalhas de afeto (fingido) para sua fonte criadora. Nesse passo tornou-se escritora famosa, ficou rica, tornou-se imortal, ao ser empossada como acadêmica, mantendo a irmã sempre a boa distância e na obscuridade, fornecendo-lhe um mínimo de subsistência e fazendo isso parecer tremenda caridade. Esta, tolinha, sentia-se protegida, em sua pobreza e solidão, e não parava de produzir muita literatura de qualidade, que enchia os bolsos da aproveitadora.

Diz o ditado que fácil vem, fácil vai, e é bom prestar atenção nisso, pois como Lucélia nunca precisou se esforçar para ter tudo, também não tinha freios em suas vontades, e com os excessos que praticava, foi muito cedo conhecer os paramos celestiais, dormindo de pé junto.

Para que fosse autorizada a entrar no céu, pediram-lhe que escrevesse um texto. A cada erro cometido, desceria um degrau do firmamento. Na metade da empreita, a coisa já ia tão mal que despencou ladeira abaixo, indo parar nos quintos dos infernos.

Como única herdeira, Lucília assumiu as posses da falecida e viveu muitos anos ainda, em meio a uma fartura que até então desconhecia. Continuou a escrever e editar obras, como se fossem de sua irmã e estivessem guardadas, tornou-se conhecida e respeitada, morrendo bem velhinha, décadas após. Foi recebida com festa e tapete vermelho no portão celestial. Ao fim de muitos festejos, procurou a irmã, e quando soube de seu paradeiro, pediu permissão para vê-la. Amparada por dois anjos, desceu às profundezas malcheirosas e a encontrou.

Ao ver Lucélia supliciada por alguns chifrudos, não se conteve e avançou sobre os tais.

Os demônios, diante da figura luminosa, escafederam-se, e ela aproveitou para carregar sua querida de volta às alturas, sob protestos dos acompanhantes. Depois de muito falar e discutir com as autoridades, permitiu-se a permanência da pecadora nas nuvens, desde que sob a forma de sombra de Lucília, já que em vida fizera desta a sua própria sombra.

Não havendo outra saída, assim se fez, mas Lucélia, vez por outra, praguejava, xingava e se maldizia, recebendo como punição um mutismo temporário. Passado um tempo, voltava a praguejar e ficar muda. De tanto isso se repetir, resolveram fazê-la renascer pobre, feia e gaga.

Para piorar, Lucília renasceu rica, linda, inteligentíssima, e recebeu a outra na casa de seus pais como filha de uma empregada. A antiga afeição ressurgiu, mas enquanto Lucília a tratava o melhor que podia, Lucélia a odiava por tudo que não tinha. Vivia praguejando, mas quanto mais tentava xingar, mais gaguejava, até perder a voz e ficar dias sem poder falar. Ao invés de se sentirem ofendidas, as pessoas riam de suas maneiras grotescas e seu mutismo.

Tornou-se figura folclórica na região e ficou conhecida como a mudinha que falava.

A única coisa que a assustava era ver um par de chifres. Voava pra debaixo da cama.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 24/09/2016
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