Bárbara

Cinco da madrugada e já me perguntava: o que fiz eu? Bárbara se fora, para sempre se fora. Ela não era mais feliz? Não gostava mais de mim? Mas se não, que fiz eu? Pois um dia já gostara, sua mão era minha, era só minha por anos. Os papéis concordavam. Foi algo que deixei de fazer? Algo em que mudei? Ou ela que mudou? Uma cartinha sobre a mesa, "Não posso mais. Adeus." A letra era firme, decidida, mas meiga e doce, letra de mulher, mulher que foi menina, mulher que é mulher. Li, reli, busquei frente, busquei verso, não havia nada. Nenhuma dica, nenhuma consideração. Só as quatro palavras, as quatro flechas em meu peito, focos de incêndio em minha estrutura. Revirei a casa. Seu armário, suas roupas, seus produtos femininos. Na caixinha de absorventes? Nem ali. Revirei minhas coisas, também, arrastei a mobília, mexi nas lixeiras, olhei os cantos do teto. Nada. A casa mal tinha tamanho para um rato se esconder tão pequena que era. Bárbara só se fora, só não podia mais e adeus. Sentei-me em sua poltrona vermelha. Era fofa, ainda estava quente. Estava sempre quente. Bárbara leu bastantes livros aqui. Eu a observava dali. Era a mais linda. Levantei-me, fui para a gaveta. Uma meia vermelha. Peguei-a, cherei-a. Bárbara sempre ficou linda de meias vermelhas. Mas não podia mais e adeus. Sinto saudades. O que eu fiz? Um nó prendeu a minha garganta. Onde está a Bárbara? Por que ela deixou o seu marido? Quero acariciar seus cabelos ondulados. Eu a amo. Ela não me amava mais mas eu ainda a amo. Era minha esposa, afinal. Minha querida esposa.

A campainha toca. Quem era? Bárbara?! Fui correndo. Era um policial porque o policiais acham quem some. Você pode me ajudar a achar minha esposa? Posso sim. Fui com a meia pelos cômodos novamente, mas ainda não tinha nada na casa. Tchau, senhor polícia. Tchau. O policial também não soube achar minha esposa. Joguei a meia na cama, deitei-me ali, chorei. Peguei o pelúcia com a mão suada. Ursinho, você viu a Bárbara? Não vi, cadê ela? Também não sei. Choramos. O nó em minha garganta era um caroço agora. Para onde foi minha esposa, ursinho? Para onde ela foi? Mas nada. O ursinho agora dormia. Levantei-me angustiado, fui para a cozinha. O relógio batia 10 horas da manhã. Abri a geladeira, meu estômago se revirou. Bárbara sempre comia comigo nas manhãs de domingo. Hoje está tudo errado aqui no lar. Lar? Sem Bárbara isto não é lar. Hoje está tudo errado aqui. Há pouco tempo mesmo nos beijávamos, fazíamos amor, dormíamos juntos, mas agora ela sumiu, sumiu para não voltar. Porque não aguenta mais e adeus. O caroço crescia um tumor. Sou um marido tão ruim assim? Peguei um copo, enchi-o de leite. Passei mal. mudei de ideia, joguei fora, lavei-o. Bárbara, onde está você?

Geladeira, você se lembra de quando Bárbara ficava aqui pela casa? Era tão linda, tão maravilhosa. Não importava a roupa que usasse, não importava nem se estava seminua, era sempre a mulher mais linda do universo. Meus pais ficaram relutantes quando eu disse que me casaria com uma negra. Conservadores que eram alegaram o quanto seria impuro misturar o sangue africano dela ao meu chinês. Como se um de nós não fosse brasileiro, geladeira! Dá para acreditar? Se bem que a gente também não ajudava: vivíamos falando de ter filhos só para provocá-los. Uma zoeira só. Foi com certeza a melhor mulher com quem poderia me casar. Negra, mais alta que eu, com o cabelo mais característico possível e dona de curvas que fazem jus à fama das mulheres brasileiras no exterior. Mas sabe o mais incrível, geladeira? É que por dentro era a mais delicada das flores do Éden. Estudou música, era uma artista nata. Ganhava quase tanto quanto eu apenas dando aulas particulares em casa. Você devia estar lá em nosso casamento, geladeira. A Bárbara tocou com vestido de noiva e tudo uma melodia que compôs só para mim. Nunca chorei tanto em toda a minha vida. Ela disse que quis fazer uma música firme, cuidadosa e ao mesmo tempo divertida como eu. Mesmo não tendo ouvido para identificar isso, sei de alguma forma que ela alcançou seu objetivo. Sentia-me tão amado…

Mas agora ela não podia mais e adeus. O que fiz eu? Bárbara se fora, para sempre se fora. Ela não era mais feliz? Não gostava mais de mim? Mas se não, que fiz eu? Pensei na cartinha em cima da mesa, pensei em sua letra firme e meiga. Estávamos pensando em ter crianças, desta vez não para provocar os meus pais. Desta vez era pra valer.

Levantei-me, fui para o corredor, deitei-me ali no chão. A lâmpada me encarou. Ela estava triste, apagada, sem poder alcançar o interruptor. Lembrei-me de um episódio com Bárbara. Foi quando uma lâmpada queimou pela primeira vez em nosso lar.

- Nico, queimou!

Fomos juntos para o mercado procurar uma lâmpada nova. Havia tantos modelos, tantas opções de luz! Terminamos pegando uma de cada só para ver qual ficava melhor. Ideia dela, sabe? Coisa de mulher que quer a casa bonita. Mas eu entrei no jogo tão alegre que a ideia bem que podia ser minha. Rimos demais enquanto trocávamos as lâmpadas, uma depois da outra.

- Olha, Nico, você é um homem ds casa agora! Quando vai começar a trocar o chuveiro?

E ríamos, e ríamos, e ríamos. Éramos jovens, estávamos casados, a casa era nossa, a vida era nossa. E sabe do mais engraçado? Por causa do dinheiro gasto não conseguimos pagar a conta de luz naquele mês. Chegaram até a cortá-la! Precisei pedir ajuda aos meus pais pela primeira vez. Na hora fiquei com vergonha, nem contei a eles o motivo de termos gastado demais, mas ainda hoje sei que a brincadeira valeu a pena. Só queria que Bárbara concordasse… porque ela não pôde mais e adeus.

Hora do psiquiátra.

- Conseguiu tirar o bilhete da mesa?

- Não, doutor. O senhor sabe… se eu tirar de lá amanhã não terei como procurá-la.

- Já faz dois anos, Antônio.

E ele sorriu.

- Mas sei que a cada dia que se passa estou mais perto de encontrá-la.

27/9/2016

29/9/2016

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 01/10/2016
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