“Estão jogando água em mim, a mãe, o pai, os meninos. Meu Deus, o que que eu fiz. A dor era tão grande mas nem se compara à que sinto agora, quente, tão quente! Se eu pudesse voltar atrás!”


“Me casei ontem. Só depois soube dela. Minha noiva não me deixou ir à casa dela, disse que era invenção para atrapalhar o nosso casamento. Agora não estou em lugar nenhum. Porque o meu corpo está aqui mas o meu pensamento está lá, com ela. Meu Deus, o que que eu fiz? Se eu pudesse voltar atrás!”


Ela despejou metade do cianeto de potássio sobre as vísceras de gado. O pai ainda sugeriu que usasse cinzas no preparo do sabão mas ela insistiu que ele comprasse o veneno. Tinha pensado em tudo.
Dia seguinte seria o casamento do seu grande amor. O namoro deles fora conturbado, ela era ciumenta, quase obsessiva. Suspeitava de toda mulher que se aproximasse dele, nem percebeu que o golpe viria de uma pessoa muito próxima, sua melhor amiga. Arrependia-se tanto de ter confiado naquela cobra. Como pudera ser tão tola, como não desconfiou do interesse daquela cascavel no relacionamento deles? Sonsa, maldita, levava e trazia recados enquanto planejava o bote. E ela, burra, só foi dar pela perfídia quando a falsa amiga apareceu grávida e disse que o filho era dele. Mas não ia ficar assim, ah! Não. Ela queria vingança.

Na boca da noite ela moeu as mamonas enquanto os outros ingredientes ferviam no tacho. Sobre o girau, o caco já esperava pelo preparo que ia passar a noite solidificando em barras de sabão da terra. Estendeu o pano molhado, espalhou a banha de porco, sorriu para o irmão menor que lhe entregava uma flor. Uma flor. A primeira que enfeitaria o seu caixão.
Havia momentos em que desistia. A vontade que tinha era de ir à casa dele, suplicar-lhe que não se casasse, confessar que o amava mais que tudo na vida. Mas o orgulho não deixava. A mágoa era mais forte. Não precisava dizer o que ele já sabia. O que sempre soubera.
Dentro do baú trancado estava o vestido de noiva que ela mesma tinha feito. Um modelo simples porém elegante, de seda. Uma coroa de flores de laranjeira presa por alfinetes a um fino véu. Quando ela imaginaria, enquanto costurava, que o vestido de noiva seria a sua mortalha? Dentro do baú também deixava a carta de despedida para os pais. Isentava-os de qualquer culpa. O culpado era ele. Somente ele. A chave miúda ela a levava pendurada no pescoço junto ao crucifixo de prata.

Quando a lua cheia estava no zênite ela terminou o serviço. Despejou o preparo sobre o pano, colocou o tacho embaixo do girau e se sentou no tamborete, chorando em silêncio. Vez em quando um soluço mais profundo lhe elevava o peito. Onde ele estaria? Provavelmente na rua, bebendo, comemorando o último dia de homem solteiro. Nem imaginava que era o último dia dela também. De vida. Ou talvez estivesse com ela, com a maldita, chafurdando em algum motel em beira de estrada.
Com esse pensamento ela levantou-se resoluta.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 08/10/2016
Reeditado em 20/03/2017
Código do texto: T5785317
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