- Eliane, para sorte sua, eu resolvi vender a fazenda quase que na mesma hora em que entrei na imobiliária, mas de maneira alguma quereria vendê-la a algum de meus vizinhos. Motivos particulares, fortes e que me seriam um tanto quanto cansativo narrar agora. No início da rodovia Imigrantes, Jeremias ajeitou o banco do carro, demonstrando familiaridade com carros de luxo, ajeitou-se o mais confortavelmente que lhe foi possível e em pouco tempo parecia ter caído em sono profundo. Voltara mesmo cansadíssimo de São Paulo e só fizera aquela ida e volta pela ansiedade de internar-se no hospital. Fizeram toda a viagem em silêncio até a porta do Albert Einstein e Eliane dirigiu despreocupada todo o longo percurso dentro da cidade imensa. Ao chegar à portaria do hospital Eliane deixou Jeremias, ainda imóvel no carro e dirigiu-se à recepção a fim de solicitar uma cadeira de rodas para que ele tivesse mais conforto na saída do automóvel. Um solícito atendente, mais do que depressa, pegou uma cadeira de rodas e acompanhou Eliane. Quando passou a mão pelo ombro de Jeremias, o atendente olhou consternado para Eliane: - Senhora, sinto muito, mas este senhor está morto. Já está até ficando frio, me parece... Eliane sentiu um forte arrepio percorrer-lhe o corpo. Viajara, talvez, por um bom tempo ao lado de um defunto sem perceber. Em um segundo passou-lhe pela cabeça a dificuldade que teria que enfrentar se o atendente deixasse o falecido em seu carro. Pensou e agiu com sua costumeira rapidez: - O que é isso, moço? O senhor por acaso é médico? Já se dá diagnóstico na porta do hospital? Depressa, depressa, coloque-o na cadeira e corra lá pra dentro. Vamos. Vamos.Vamos, depressa mesmo. Vamos... O tom urgente e autoritário de Eliane não lhe deu outra alternativa a não ser obedecer bem depressa. Colocou o corpo quase enrijecido na cadeira de rodas e correu para a sala de emergências do famoso hospital. Enquanto isso Eliane entrou em seu carro e saiu em disparada. Queria ficar o mais longe possível dali no menor tempo possível. O coitado do defunto que “se virasse”. Ela não tinha nada a ver com a morte dele e não queria encrenca alguma com depoimento, esclarecimentos, enfim, nada que pudesse incomodá-la. De repente freou o carro no meio da rua, quase provocando uma colisão traseira, ouviu alguns palavrões, e encostou no meio-fio, dando um forte tapa na própria testa: - Deus do céu! Estou ficando uma besta quadrada !! Uma refinada imbecil! Uma puta pateta sem miolos mesmo! Lembrara-se que ao fazer a transferência do dinheiro para a conta de Jeremias, este ficara ao seu lado no balcão, com o talão de cheques aberto enquanto assinava alguns cheques em branco, e depois guardara o talão no bolso sem utilizar nenhuma das folhas. Lembrou-se que olhara para o homem e quase lhe perguntara se pensava em fazer algum saque de imediato, mas achando que poderia ser considerada intrometida, calara-se. Ele percebera o olhar dela e explicara-se: - Estou aproveitando enquanto o remédio está fazendo efeito para assinar alguns cheques. Quando o efeito passar minhas mãos voltarão a tremer e ficará muito mais difícil. Não conseguirei assinar mais nada. Na hora Eliane, cujos olhos nada perdiam, notara que o homem não havia cruzado os cheques. Não fizera neles os dois riscos que só permitiriam que qualquer quantia fosse sacada apenas através de depósitos em conta-corrente. Manobrando rapidamente, voltou em direção do hospital e correu como doida com o carro, parou na entrada do estacionamento e jogou as chaves para o manobrista: - Cuide do carro, moço. Eu me perdi nas imediações e meu pai já deve estar sendo atendido. - Espere, moça. Tem que pegar o cartão... - Cuide disso para mim. Depois acerto uma caixinha muito boa com você. Correu então em direção à portaria, perguntou pressurosamente por Jeremias e teve “um choque” ao saber que ele realmente chegara morto ao hospital. As lágrimas lhe vieram fartas e abundantes e uma moça correu a atendê-la, encaminhando-a a uma saleta discreta. Na saleta Eliane disse à moça que era amante do velho, que viviam juntos havia muitos anos, e que a morte dele fora um grande choque para ela. Ele, Jeremias, não tinha mais ninguém no mundo a não ser ela. A moça saiu, voltou com os pertences de Jeremias e os entregou a ela. Eram seu relógio, sua carteira, seu dinheiro de bolso, pente, lenço e anel de ouro. - A senhora cuidará dos detalhes do enterro? Ou prefere que tomemos todas as providências? Quer saber em quanto ficará a despesa e outros detalhes? - Espere, por favor, moça. Foi tudo tão repentino que não tive tempo ainda de pensar em nada. Não havia uma pasta com ele quando entrou aqui? - Nem poderia haver, senhora. Ele entrou aqui já falecido. O atendente disse que avisou à senhora no ato, assim que percebeu o óbito. - É mesmo...Eu é que não quis acreditar nessa tragédia. A pasta deve ter ficado no meu carro e lá é que estavam os documentos pessoais dele. - Não senhora. Os talões de cheques e os documentos estão na carteira dele. Tivemos que procurar pelos documentos, a senhora entende, não é? Eliane abriu a carteira e viu logo que os dois talões de cheques estavam mesmo lá dentro. Soltou um discreto suspiro de alívio. - A senhora quer que comuniquemos a alguém da família dele? - Ele só tinha a mim neste mundo, moça. A família o abandonou há muito tempo e ele nunca mais ouviu falar dos filhos. Ah, meu Deus....que coisa estúpida é a morte... A recepcionista sugeriu a Eliane que fosse até o restaurante do hospital, tomasse alguma coisa, se acalmasse um pouco e depois voltasse para que fosse encaminhada ao departamento competente, que tomaria todas as providências para o féretro. Eliane aceitou a sugestão, foi ao restaurante, tomou um refrigerante rapidamente e saiu depois por uma porta lateral e correu para o estacionamento. Assim que lhe entregaram seu carro, voltou depressa para Santos. Não sem antes confirmar que os dois cheques assinados em sem cruzar estavam na carteira do falecido. E as assinaturas eram facílimas de se falsificar. Um amigo dela as faria idênticas e por pouco dinheiro. Levava com ela também o valiosíssimo relógio de Jeremias, o anel, seu dinheiro de bolso e a maleta com que ele viajara para internar-se. No dia seguinte Eliane foi uma das primeiras clientes a entrar na agência do banco. Preenchera antes, datilografando, o cheque com o valor correspondente ao que pagara a Jeremias pela fazenda na véspera. O outro cheque seria preenchido mais tarde, depois que ela soubesse o quanto poderia sacar com ele. Assim que ela confirmasse suas suspeitas de que existia ainda muito dinheiro naquela conta, mesmo após o seu saque. O caixa contava as notas grandes, em maços de dez em dez, e enfiava cada montinho logo abaixo do outro e a pilha crescia a olhos vistos, ocupando todo o espaço em volta da máquina. Eliane sorriu para ele e brincou: - E então, moço? O banco está passando aperto para pagar esse cheque? - Hoje até que não, mas o normal mesmo é o cliente avisar um dia antes para que possamos preparar o dinheiro, deixá-lo separado e contado. Hoje, para sorte sua, havia dinheiro suficiente para este saque. O banco teria que pedir um prazo se o seu Jeremias resolvesse sacar tudo que tem de uma vez só. Teria que avisar antes para que deixássemos a grana toda preparada. - Eu sei que o seu Jeremias é muito rico, mas, coitado, terá que sacar tudo para cuidar-se. Está fazendo um tratamento caríssimo contra o câncer. - É mesmo? Coitado...Gente muito boa o seu Jeremias. Homem simples, bem educado. Nem parece ter tudo que tem. Aqui no banco todos nós gostamos muito dele. - Ele deixou comigo um cheque assinado em branco. Para alguma emergência, sabe? Mas prefiro esperar até amanhã e ver o que ele resolverá. Terá que fazer um depósito imenso no hospital, coitado. Acho que ficará lá por alguns meses... - Você é procuradora dele? Filha? Neta? - Não. Nada disso. Na verdade sou uma espécie de dama-de-companhia dele. Era muito amigo de meu pai e apegou-se demais a mim nos últimos tempos. Vive brincando e dizendo que Deus mandou um anjo para cuidar dele antes que chegue a hora final dele. Coitado, tão bonzinho e amável...Minha mãe foi namorada dele há uns trinta e poucos anos atrás. Então ele brinca dizendo que quase fui sua filha. Tadinho... = continua amanhã
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 25/07/2007
Código do texto: T578704
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