"Rara Raça Russa" = Conto de Humor

- Mamma mia! Esqueci totalmente a ração das gatas, amor! Faltam só uns dez minutos pro pet shop fechar e não vai dar tempo de chegar lá.
- Aqui perto tem um pet shop muito bom.
- Eu sei, mas é aquela loja aqui perto é uma verdadeira butique de rações. Os preços de lá são de lascar. Aqui é bairro chique, querida.
- Compre só um pacotinho de meio quilo hoje, meu bem. Amanhã você vai lá onde já é freguês e pega um saco de três quilos.
- E pro cachorrinho esquisito que achei na rua?
- Aquele ainda não precisa de ração, Evê. É muito novinho ainda. Está novo até pra comer ração para filhote.
- Continuo dando o leite em pó pra ele?
- Melhor; né?
- Você vai comigo ou me espera no carro?
- Te espero no carro. Estou exausta hoje. Não parei o dia todo na loja. Não deu nem pra almoçar direito.
Depois desse diálogo com a esposa, Everaldo estacionou em frente ao elegante pet shop daquele bairro de milionários, viu os preços, sentiu uma tremenda dor nos bolsos, e com muita má vontade pegou um dos saquinhos menores de ração para suas queridas gatas. “Moças” exigentes, não suportavam ração que levasse peixe em sua composição.
Com o modesto pacote na mão, entrou na fila do caixa,logo atrás de uma vistosa madame que portava um micro cachorrinho nos braços. Uma miniatura bonitinha que olhava para Everaldo como que o examinando detidamente.
Ao perceber o olhar de seu bichinho fixo em Everaldo, a mulher sorriu para ele e comentou risonha:
- Moço, acho que o Leonardo José gostou do senhor. Olha só o jeito como o encara.
- Muito bonito seu cachorrinho, senhora. Combina com a dona, aliás.
- Gentileza sua. Também gosta de cachorros?
- Muito, mas no momento só tenho algumas gatas.
- De raça?
- Siamesas. Cada uma mais linda que a outra. Tenho quatro em casa.
A fila estava grande e a conversa rolou solta entre os dois. A mulher contou, em detalhes, todo o cuidado, todo o trabalho, todas as despesas que seus mini-cães lhe davam o ano inteiro e Everaldo ficou sabendo que eles não suportavam queijo de Minas, não toleravam leite c, “exigiam” filé mignon pelo menos uma vez por semana, e não dormiam sem uma música suave tocando baixinho perto de suas casinhas importadas e maravilhosas.
- Carne moída eles não podem nem ver, o senhor acredita? Torcem as carinhas e ficam tristes demais. Uma de minhas empregadas tem que cortar os bifes em quadradinhos e dar nas boquinhas deles até que eles fiquem com as barriguinhas cheinhas. Mas por eles tudo vale a pena, não é mesmo? São os melhores amigos do mundo. Os melhores amigos que uma pessoa pode ter. Gosto tanto de meus queridos que até acabo de encomendar uma gargantilha de identificação maravilhosa para cada um deles. Mandei fazê-las em ouro dezoito com pedras escolhidas. Eles ficarão tão lindos com elas, os meus queridos exigentes...Esse aqui é doido por queijo francês. E quanto mais ardidinho mais ele adora. Ah, o senhor acredita que eles adoram Martinho da Vila e Zeca Pagodinho? Mas pra dormir preferem Bach ou Bethoven, bem baixinho, que os ouvidinhos deles são muito mais sensíveis que os nossos, o senhor sabe; não é?
Everaldo pensou em perguntar se o cãozinho gostava também de uma cervejinha para acompanhar o queijo, ou se preferia champagne também francesa, mas a mulher, apesar de seu exibicionismo de posses, era simpática no jeito de falar e tinha um belo sorriso que desarmava qualquer agressividade, por suave que fosse.
- Então o senhor não tem nem um cachorrinho em casa? Não posso imaginar uma casa sem um pelo menos.
- Tenho um, mas apenas provisoriamente. Estou esperando que desmame para arranjar um novo dono pra ele.
- De raça?
- Sim senhora. Uma raça raríssima.
- Não existe raça de cão que eu não conheça, moço. Qual é a raça desse cãozinho?
- Ele acaba de chegar ao Brasil. A raça dele é dvorniajca. Já ouviu falar?
- Sinceramente, não. E olha que conheço e estudo todas as raças. É o assunto que me torna fanática. Quais as características principais da raça?
- Inteligência, adaptabilidade, amor pelas crianças, porte pequeno, resistente à maioria das doenças, aprende truques com facilidade, e é sempre apegadíssimo a quem lhe dá carinho e atenção. Esperto feito ele só. Difícil haver igual.
- Maravilhoso!! Será que eu poderia conhecê-lo?
- No momento está difícil. Terei que viajar amanhã cedo e não sei quando voltarei a São Paulo. Mas acho que não lhe adiantará muito conhecê-lo. Tenho um amigo que está doido pra ficar com ele. Assim que for desmamado ele quer ir buscá-lo.
- O senhor vai doar essa maravilha, essa raridade?
- Não, minha senhora. Claro que não. Ele é um dvorniajca legítimo e eu não seria tão generoso assim. Claro que vou cobrar e cobrar bem. Mais alguns dias e poderei entregá-lo ao novo dono.
A mulher ficou calada por um certo tempo, olhando para Everaldo quase que do mesmo modo que seu cachorrinho de colo antes o encarara, e finalmente manifestou:
- Moço, eu não sei quanto o seu amigo vai lhe pagar pelo cãozinho, mas se o senhor me garantir por escrito, escrito e assinado, que ele é um legítimo dvor...como é mesmo?
- Di-vor-ni-aji-ca
-...isso, eu lhe pago o dobro por ele.
- É uma grana alta, minha senhora.
- A altura da grana depende apenas da altura de nossas finanças, moço. Quanto seu amigo está disposto a pagar por ele?
- Mil dólares.
- Pago dois mil. O senhor é capaz de garantir por escrito que ele é um legítimo dvorniajca? Quero começar a criação dele aqui logo que conseguir uma fêmea da raça.
- Sem sombra de dúvida. Faço o recibo, dou a garantia, assino e reconheço em cartório.
Alguns dias depois Everaldo levou o “dvorniajca” à mansão da mulher, deu a ela, junto com o cãozinho, o documento exigido, embolsou os dois mil dólares e saiu rindo à toa.
- Evê, você não tem remorsos? Enganou a mulher, embolsou os dois mil dólares e ainda sai rindo, feliz da vida?
- E quem lhe disse que enganei a dona? Prove que eu enganei a mulher e eu lhe darei a metade do dinheiro, minha querida. Além do mais, meu bem, quem dá queijo importado, filé mignon, bifinhos cortadinhos em quadradinhos na boquinha dos bichinhos maravilhosinhos, tem mais é que pagar bem por um dvorniajca legítimo, dos bons.
- Que diabo de raça foi essa que você inventou? Aposto que inventou na hora, só para lesar a madame Rabo Cheio de Grana. E ainda diz que acabou de chegar ao Brasil...
- Não inventei nada. Na Rússia está cheio deles. Dvorniajca é vira-latas em russo, amor. E esse que eu vendi a ela, acabou de chegar ao Brasil ou não? Recém-nascido...
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 25/07/2007
Código do texto: T578844
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