AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 12 - MUSA PARADISÍACA

Alguém já ouviu falar em Tiana Rabisco? Provavelmente, não.

No entanto há que se reconhecer sua renhida batalha, de todo jeito, enquanto durou sua curta existência. E para melhor entendimento, comecemos pelo sobrenome, que na origem era trabisco. Como, porém, a pequena não largava lápis e papel, passaram a chamá-la Rabisco. Isso até chegar à puberdade, porque Tiana era alterada, mas ninguém na miserável região em que vivia, entendia o que acontecia em seu corpo. Principalmente, o pacová.

Pacová é palavra de origem guarani, e significa folha dobrada. Usada pelos índios e caboclos para designar a banana, o filodendro, um tipo de cardamomo brasileiro e . . . o saco escrotal.

Pois Tiana tinha um pacová. Não era um pacovazinho, mas um senhor pacová.

Não era a única estranheza em seu robusto corpo, mas, com certeza, a que chamava mais atenção. Os garotos fugiam dela, atiravam-lhe coisas, e passaram a chamá-la Pacovão.

A garota, ao contrário do que é normal supor, não ficava constrangida com xingamentos ou o isolamento forçado, mas se algum achincalhador menos precavido se aproximava demais, sentia o peso de uma braçada da “menininha”. Ela gostava da solidão, e mesmo em casa, não costumava compartilhar refeições, deveres ou lazer com a família, preferindo estar só com seus rabiscos, que àquela altura já formavam versos singelos ou pequenos e delicados textos.

Não dava maior imporância às suas particularidades, mesmo sabendo ser tão diferente das demais gurias. Com o passar do tempo, todavia, a situação foi complicando. Muitos pelos brotavam por todo seu corpo, seu rosto foi tomando um aspecto masculino, ossos e músculos cresceram em demasia, e quando beirava os dezesseis, tinha a aparência de um garoto forte, marombado, barbudo, sobrancelhas grossas e voz grave. E ainda um braço que metia medo.

Foi morar num sítio meio abandonado pelos avós, e entre os afazeres cotidianos, com plantas, animais e a arrumação, sempre achava tempo para sua escrevedura. Por quase dez anos assim viveu, esquecida por quase todos, pois nunca saía desse cafundó para nada. Sua mãe, a única que vinha vê-la vez em quando, trazia-lhe o necessário, dava-lhe alguma notícia e levava textos consigo, a pedido de Tiana, para enviá-los a um jornal da capital. Nos três últimos anos o tal periódico publicava, semanalmente, trabalhos da escritora, sob pseudômino Musa Paradisíaca, e lhe pagava alguns tostões, que a mãe recebia e comprava seus trens.

As moçoilas de muitos lugares, por onde as páginas impressas circulavam, liam a prosa, declamavam os versos e sonhavam sonhos de amor. Encantavam-se com o romantismo que exalava da escrita de Tiana, mas por mais que entupissem de correspondência o jornal, não havia como conhecer ou acessar o autor, que até os editores desconheciam.

A persistência feminina, contudo, é impressionante, e uma sonhadora balzaquiana, já beirando os quarenta, tanto fez que descobriu a mãe de nossa protagonista, mas ao invés de inquirir-lhe a respeito, decidiu segui-la, dia e noite, até que chegou ao sítio e, sem cerimônia, apresentou-se como fã número um, já abraçando e beijando a pessoa de “seu ídolo”.

A senhora, assustada e estupefata, ficou sem ação, mas Rabisco, depois do espanto, até gostou do chamego. Retribuiu o carinho e sentiu algo bom, que desconhecia, totalmente.

Indubitavelmente, nascia ali uma bem querença mútua, mas Tiana sabia que deveria ter uma conversa esclarecedora com sua pretendente, e que, por mais que isso pudesse significar repúdio, em lugar do afeto, não havia outro caminho a seguir. Puxou-a, pois, para si, e sem rodeios, expôs seu passado, sua situação e seu corpo (desnudou-se). A mulher arregalou seus olhos, diante do pacovão e companhia limitada, mas não se indispôs muito, pois características femininas, há muito tempo tinham deixado de existir, naquela corpulência toda.

Com a benção da genitora, ali presente, decidiram se unir, e ao cabo de alguns dias, foram morar na casa da fã-noiva em cidade distante. Tiana Rabisco morreu, para fazer nascer Sebastião Trabuco, respeitável morador de Cantão da Lapa e marido de Elza. Ficou famoso como escritor, virou fazendeiro e entrou na política, mas nunca deixou de rabiscar.

Certo dia, sua mulher quis saber se Musa Paradisíaca, nome com o qual escrevia para o jornal, em tempos idos, referia-se a uma mulher sonhada, que esperava encontrar.

- Que nada, minha nêga! Pacovão era meu apelido, por causa do tamanho de meu saco, e pacová, como você deve saber, é como algumas cunhãs chamam a banana. Descobri, lendo, que o nome científico da fruta é musa paradisíaca, então, ao invés de me apresentar como a banana-saco, que não seria bem aceito, optei por essa alternativa mais poética. Acho que ainda não sabia sonhar, mas acreditava num destino especial. Você é a prova que deu certo.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 15/10/2016
Código do texto: T5792739
Classificação de conteúdo: seguro