AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 13 - UM ESCRITOR NO PARAÍSO

- Você deveria morar em praia erma, rústica e tranquila, para chamar a inspiração.

Motivado pela sugestão, Percival Guantim, escritor já cinquentão, resolveu pensar no assunto com muita seriedade. Não estava mais engolindo o trânsito caótico, a poluição, a água encanada suja, a violência e zoeira ininterrupta da grande urbe, que não diminuía à noite.

Durante um mês de abril quente e seco. percorreu a orla sul do país, em busca de recanto paradisíaco, e o achou num balneário simples, quilômetros distante do centro urbano ao qual pertencia (que, por sua vez, também era minúsculo). Ruas de areia, casas sem cerca ou muro, praia com restinga e arroio, dunas e outras belezas naturais, que o encantaram.

Ao encontrar uma casinha de seu gosto, outra surpresa: custava um décimo do preço de seu apartamento. Fez o negócio, imediatamente. Logo depois chegava com sua mudança, sem nem ter feito limpeza prévia no imóvel, o que lhe valeu desagradável recepção. Logo ao entrar foi atacado por milhares de pulgas, e teve de ficar pelado, no meio da rua, correr até a praia e se jogar no mar, tal o desespero que o acometeu. As coceiras duraram três dias e noites.

Suas tralhas ficaram entulhadas num galpão próximo, enquanto dedetizavam o lugar.

Pouco mais cauteloso, após dez dias resolveu limpar e arrumar a residência, antes de trazer a mobília, mas por todo canto onde mexia encontrava problemas. Acabou tendo de providenciar pequena reforma, que se estendeu por três semanas, durante as quais pernoitava no tal galpão, à base de banhos seguidos de repelente, tal a quantidade de mosquitos que perambulavam à sua volta. Na primeira noite tivera de dormir encapotado, suando em bicas.

Levou um sábado inteiro para baldear seus pertences, quando tudo ficou pronto. Eram onze da noite, quando seus ajudantes foram embora e ele, praticamente, desmaiou no sofá, só acordando com o canto insistente de um galo, às cinco da matina. Pretendia dormir mais um tanto, mas como o bicho não sossegava, resolveu ajeitar, detalhadamente, seu cantinho, fazer o primeiro desjejum no novo espaço e olhar o sol nascer, da janela da pequena cozinha.

Ao tentar acender a luz, verificou faltar energia elétrica (o velho relógio de luz estava oxidado e, ao ser exigido, durante a reforma, parou de funcionar), acendeu uma vela e buscou a caixa onde havia sido guardada a comida, mas não a encontrou (seus ajudantes acharam por bem levá-la, como pagamento adicional). Sentou-se, faminto e desconsolado, e viu a claridade que anunciava a chegada do dia na janela. Levantou-se para apreciar o crepúsculo matutino, mas a neblina era tanta, que nem a jardineira, grudada à parede, estava à vista.

Os dias seguintes foram de descobertas. Descobriu a inexistência de acesso à internet, múltiplas goteiras (que mesmo reparadas, voltavam a surgir), gambás inquietos e barulhentos no forro, corujas e quero-queros briguentos no quintal, e o maldito galo cantante madrugador.

O fim do outono trouxe os ventos fortes e gelados, que o obrigaram a trabalhar em seus textos, envolto em edredom e ao lado de um aquecedor, sem pensar em por o nariz para fora de casa. Só ao fim da primavera tais ventos arrefeceram, e um calorzinho gostoso prometia, enfim, permitir o gozo das belezas locais, em passeios idílicos.

Ao visitar a restinga, voltou a galope pra casa, cheio de caroços coceirentos, provocados por borrachudos, e enquanto se banhava, sentiu a casa tremer. Correu à janela e viu alguns jovens veranistas, em volta de um carro com o som à toda. Não conseguia sequer ouvir seus próprios pensamentos, e enquanto pensava no que fazer, sentiu-se sufocado. Rolos maciços de fumaça invadiam seus aposentos e o obrigaram a fugir nu (de novo) para a rua. Porém, de nada adiantou, pois lá fora o fumacê era intenso, e vinha de grande fogueira acesa por vizinho, para queimar “um matinho roçado”. Pelo volume da desgraceira, praguejou, dava pra queimar uma floresta inteira. E aquela foi apenas a primeira de centenas de outras queimadas.

Defumado, quase surdo, empolado e tomado de coceiras, não sabia o que fazer.

A partir daquela noite, nos finais de semana e feriados, a barulheira dos jovens competia com a fumarada intensa, madrugada adentro. Apenas as manhãs escapavam ilesas, e durante as primeiras horas do dia, ele caminhava, aspirava ar fresco e molhava os pés nas ondinhas.

Descobriu uma amoreira carregadinha. À sombra da pequena árvore colheu e comeu as frutinhas que pendiam. Não teve tempo de chegar em casa e já se borrou todo no caminho, por causa do veneno que, soube depois, alguns moradores pulverizavam sobre todas as plantas.

Vendeu tudo ao primeiro interessado, mudou-se o mais rápido que pôde para a cidade grande de onde viera, e ao revê-la, caótica e suja, sentiu que retornava ao paraíso.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 23/10/2016
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