AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 14 - A ESPOSA DO LITERATO

- Cê tá de novo sonhando de olho aberto, com a cabeça nas nuvens, Fonsinho?

Clarice não se conformava com o jeito meio maluco do marido, que não tinha amigos, não gostava de futebol e nem sequer olhava um rabo de saia, como os outros homens. Ficava um tempão sentado, perto da janela, olhando o céu e rabiscando umas coisas esquisitas, que ela lia, mas não entendia nadinha. Achava que seu homem estava despirocando, ficando gagá. Desde o tempo de namoro Afonso sempre fora avoado, desajeitado, vestia-se mal e lhe falava de estrelas, musas, ninfas e mais um monte de nomes estranhos, que ela ouvia, fingia entender e continuava a mascar o chiclete, esperando que ele a levasse à danceteria. Tinha de reconhecer que era bonito, tanto que suas amigas a invejavam, ao verem os dois passarem de braços dados, mas só ela sabia das maluquices que tinha de aguentar, todo o tempo.

Doidinha pra casar, mentiu que estava grávida, e o enganado nem titubeou. Marcaram o casamento para dali a um mês, e o mais intrigante é que ele nunca perguntou porque o bebê nunca apareceu. Na verdade, Clarice evitava a gravidez de todo jeito que podia, pois embora quisesse posar de esposa, pretendia continuar a frequentar bailes, sair com as amigas, sentir-se atraente e passear muito. O problema é que Afonso nunca queria sair de casa.

A casa era alugada, dinheiro contado, mas como o marido era distraído ao extremo, não era nada difícil afanar quase todo seu salário, do trabalho que exercia como escriturário, pois o gajo nada fazia, comia pouco, usava roupa surrada e velha, gastando quase todo o tempo ali sentado, escrevendo, escrevendo. A menina, esperta que era, deixava o maluco curtindo suas maluquices e se espalhava por todo canto, até onde a bufunfa permitia, e então voltava pra casa. Chegava a ficar dias fora, mas ao retornar encontrava o coitado no mesmo lugar, barba crescida, cara amassada, olhos injetados e sorriso frouxo nos lábios.

Não notava a ausência da esposa, não perguntava nada, nada pedia.

O sujeito, em resumo, não atinava com nada do que acontecia ao seu redor.

Após pouco mais de dois anos de vida em comum (ou incomum), a pouca identificação que a mulher tinha para com ele foi para o brejo. Ela o desprezava e já nem tinha mais gana de roubar seu dinheiro. Numa de suas aventuras encontrara um mulato maneiro, que tinha jeito de homem, sabia como agradá-la e gostava das coisas certas. Fez as malas e se foi.

Com a casa em completo silêncio, permanentemente, Afonso abstraiu-se tanto, que até esqueceu dos compromissos, da alimentação e começou a definhar. Um tio do rapaz resolveu visitá-lo, a pedido de seu patrão, que estranhou sua ausência. Encontrou-o debruçado sobre a mesa, em péssimas condições. Após semanas internado, escapou, por pouco, do pior.

Cândido providenciou uma faxina completa na casa do sobrinho e resolveu permanecer em sua companhia por algum tempo. Quando a faxineira lhe trouxe um maço grande de papéis e perguntou se devia jogar fora, o homem deu uma olhada. Mesmo não sendo sujeito dado à leitura, entendeu se tratar de algo fora do comum e levou a coisa toda a uma editora.

Em menos de um ano, por conta da obra prima contida naquelas páginas, Afonso ficou famoso, seu livro vendia dezenas de milhares de cópias a cada mês, vivia sendo requisitado para palestras e noites de autógrafos, tornando-se célebre e rico em curto espaço de tempo.

O mais curioso é que após recuperar-se da quase morte, mudou seu jeito de ser.

Agora se tornara atento aos acontecimentos, risonho e simpático a todos, falante, ágil e articulado. Comunicava-se, facilmente, com plateias enormes e arrancava risos com facilidade. Sempre cercado de mulheres cobiçosas e admiradores, não parava quieto.

Certo dia defrontou-se, à saída de um teatro, com sua ex-eposa, acompanhada de um sujeito grande, musculoso. Ambos malvestidos, desgrenhados e carrancudos. Ela nem esperou que ele dissesse algo e já avançou, com o dedo em riste, dizendo querer metade de tudo que ganhara, e que caso negasse ia procurar resolver seus diretos na justiça. Seu acompanhante se aproximou de Afonso, soltou-lhe um bafo de cachaça na cara e disse: - Pensa bem, mané!

Tio Cândido, que a tudo assistia, e assumira o posto de empresário, amigo e defensor, chamou o grandão, mostrou-lhe o distintivo de delegado e pediu que repetise a advertência.

- Ih, nêga! Entornô o cardo! Tô saindo fora. Acho que vai sobrá pra tu.

Diante do olhar carrancudo do homem, Clarice achou melhor partir pra outra. Não deram mais as caras. Afonso, na ocasião, ao invés de irritar-se, achou tudo divertido e comentou:

- Sabe que isso ainda vai render uma boa história? Será que alguém duvida?

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 29/10/2016
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