Pai Branco, Mãe Preta

Reis e escravos

Pela trilha na selva, vão duzentos e cinquenta prisioneiros acorrentados. Cada um fala uma língua diferente. Alguns eram reis, sábios, homens ricos em suas tribos, aqui são todos mercadoria. Caminham dias e noites, sem saber aonde vão. Água e comida apenas o suficiente para sobreviver. Quando se queixam, os guardas mostram as armas, os chicotes e dizem que em Badagry terão comida até para engordar. E que vão passear de navio. Os que não entendem a língua dos algozes entendem os gestos. Os guardas se dobram de tanto rir.

Goodluck é um dos prisioneiros. No pesadelo seguinte, alguns dos cativos fogem pelo caminho, uns são recapturados, outros morrem vítimas de insetos, serpentes, lagartos e animais carnívoros. As doenças tropicais se encarregam dos outros. Entre todos, só Goodluck sabe o destino: serem comprados, cruzar o oceano e parar no Brasil. Sabe também que ainda vai passar muito tempo até que possam cruzar de volta o Atlântico, na pele de seus tataranetos e morar em Popo Aguda e daí se esparramarem de novo pela Mãe África. Quando chegam a Badagry, Nna Onyeocha os arremata e os coloca em leilão para os mercadores estrangeiros. A fotografia em preto-e-branco de seu pai biológico toma vida e arremata Vó Cessa, e eles são separados. Goodluck chora, grita, esperneia, não quer ficar sozinho, e acorda com as costas ardendo das chicotadas do capataz.

A encomenda

Acho que Pai Branco está ficando caduco. Nna Onyeocha é como se diz Pai Branco em Ibo. Quando começou a se interessar pelo meu idioma, aprendeu logo essa expressão, gostou e pediu-me para chamá-lo assim daí para frente, pois ele tinha sua Mãe Preta no Brasil: Vó Cessa. Isso foi quando chegou à Nigéria, há uns vinte anos, interessado por tudo, especialmente pelas religiões tradicionais e pelos descendentes dos escravos brasileiros. Era pesquisador, estudante, escritor, tradutor, porém, agora, não creio que esteja bem da cabeça. Ontem, pediu-me para entregar um envelope à Mãe Preta num endereço em Lagos, tão logo soube da minha viagem à ex-capital da Nigéria. Ele era criança quando a conheceu no Brasil, faz setenta anos. Claro que ela já deve ter morrido há muito tempo. Mas ele insiste que ela está em Lagos, que tem certeza absoluta. Que um dia vou entender certas coisas. Coisas? Que coisas?

“Essas coisas” podem ser o que viu em Lagos, nos museus da tradição nigeriana, quando pesquisava as religiões nativas, essas que viajaram com os escravos para o Brasil. Muitas vezes me convidou, aceitei apenas uma vez. Aprendi no seminário católico que essas crenças são idolatria, e, pelo menos nisso, estamos em sintonia com os do Norte: é pecado. Fazem sacrifícios de animais e até de seres humanos. Para essas religiões ancestrais, os espíritos dos antepassados voltam à vida de tempos em tempos, escapando de buracos de ninhos de formigas e seus deuses moram nas águas. Tudo contrário a minha fé. Os funcionários desses museus conhecem os templos clandestinos e ganham dinheiro para indicar os endereços aos turistas, pesquisadores e a outros com interesses oblíquos.

“Essas coisas” também podem ser o que senti quando fui aquela única vez ao templo para agradá-lo. Ele cochichou-me:

- Isto é um terreiro. Um lugar onde se encontram os espíritos.

Nem bem entrei no local, ondas elétricas subiram pela espinha até a nuca, espalhando-se pelos braços, os cabelos eriçaram-se e o rosto pegou fogo.Um tremor incontrolável começou a tomar conta do corpo. Quando ia perder os sentidos, sacudi a cabeça para afastar aquela sensação de que se vai entrar no portal do esquecimento. Reagi e concentrei-me no movimento ao redor. Aí a sensação passou. Contei-lhe mais tarde, e me disse que eu estava entrando em contato com os espíritos dos antepassados.

- Você tem espiritualidade forte. Pode ser ponte. A ciência chama essa ponte de glândula pineal.

Pelo terror que senti ao perder o controle de mim mesmo e pela sensação de pecado, resquício da repressiva educação do seminário, nunca mais voltei, até que ele parou de convidar-me.

Dobrando a serra

Nna Onyeocha anda dizendo que tem visto sombras passando perto dele, que se demoram um pouco a sua volta, como se o estivessem observando. Quando se vira, de repente, para surpreendê-las e saber o que ou quem são, elas desaparecem. E também o vejo cada vez mais desinteressado de tudo. Várias vezes já o vi assistindo televisão de olhos fechados, mascando a língua, até dormir na poltrona. Todas as noites, como moramos no mesmo condomínio, dou uma passadinha em sua quitinete para acordá-lo e pedir que vá para a cama. Aí pergunto:

- Tava vendo o que na tevê?

- Nada, só escutando e cochilando.

E explica:

- Já não enxergo direito mesmo... E também já vi tudo que precisava. Depois de certo tempo de vida, tudo é repetição. A novidade é só o outro mundo! E esse já tô vendo na dobra da serra da Cruz do Monte.

- Nna Onyeocha, não fala bobagem. Você está muito bem. E isso de enxergar é só fazer a cirurgia. Já falamos sobre isso. E que serra é essa? Cruz do Monte?

- Aqui vocês chamam de Zuma Rock. Mas tá errado. É Cruz do Monte, lá tem festa todo dia 3 de maio, festa de Santa Cruz. Este ano quero ir. Vou rezar lá em cima. Se tiver calor, tomar suco de groselha. Você pode me levar?

- Claro, Nna.

Há muitas serras com esse nome em Minas Gerais, Brasil. Ele deve estar se referindo à de Pitangui, vila de mineração de ouro no Sec. XVIII, cidade onde nasceu. Pelo mapa na internet, Goodluck sobrevoa o lugar. A cidade está plantada aos pés de uma serra, a Cruz do Monte. Por causa da mineração, foi lugar de muito escravo. Embora bem mais acidentado, o relevo lembra o cinturão de montanhas que circunda Abuja. É, ele já está misturando passado com presente!

Na véspera da viagem a Lagos, insisto no convite:

- Kee kwanu? Como está? Vamos viajar? Minha mãe disse para te levar. Olha, vai ser um bom passeio. Vamos passar por Lokoja, pernoitamos em Owerri com ela. Estou indo de carro. O senhor precisa sair de casa, sair de Abuja. Se não quiser ficar na casa de minha mãe, vamos juntos a Lagos, e o senhor mesmo entrega a encomenda. Que acha?

- Não, obrigado, prefiro ficar. Boa viagem. Vai com Deus, já abençoei minha nora e os dois meninos. Pode ir dormir, vocês vão sair cedo. Tá levando minha encomenda?

- Sim. Fica tranquilo, Nna.

Em marcha

Amanhece. Goodluck entra no carro. Confere os retrovisores, ajeita o banco e aguarda a mulher para dar a partida. Ela já tinha acomodado a bagagem e colocado no assento traseiro o tecido com as cores vermelha, preta e verde, com o meio sol amarelo no centro, como Goodluck gosta. Parece uma bandeira, mas ela não sabe de que lugar. As crianças estão bem tranquilas, sentadinhas, cintos atados, comendo biscoitos. Saindo tão cedo, não tomaram o café-da-manhã, por isso ela preparou sanduíches para quando tiverem fome e não ter de parar no caminho. Mas logo estarão dormindo. A mulher volta com a chave da casa e guarda no porta-luvas do carro. Coloca um pendrive de música gospel e acomoda-se na poltrona, dá um suspiro e fecha os olhos, sinal costumeiro de que, de sua parte, já está tudo pronto. O sol começa a apontar no horizonte. Hora boa de sair de viagem.

O carro é japonês, novo, moderno. Acerta o GPS: Lokoja, destino final do dia. Planeja pernoitar e levar a mulher e os filhos a um restaurante indiano, promessa nunca cumprida, porque passa direto, tem pressa de chegar no mesmo dia na casa de sua mãe em Owerri, a uns trezentos e cinquenta km mais ao sul. Dessa vez, quer cumprir a promessa. No outro dia, é só sair bem cedo, que ainda chegam para o almoço. Em Owerri, tem um encontro político reservado e, de lá, segue para Lagos, onde o esperam os dois compromissos importantes: a entrevista para o pós-doutorado em Londres e a encomenda de Nna Onyeocha. Esse último não o deixa em paz. Na saída do condomínio, despedem-se dos seguranças. Todas as recomendações já tinham sido feitas de véspera, o encarregado fica com a chave da porta do apartamento. As crianças descem do carro e abraçam alguns deles, todos conhecidos de muito tempo. Vão ficar quase dois meses longe de casa, pelas férias escolares. Só ele volta antes.

Sábado de manhã, pouco trânsito, as avenidas são largas, é fácil sair de Abuja. Em meia hora já pega a via expressa que contorna a cidade e entra na estrada que leva para o Sul. São duzentos quilômetros até Lokoja, a metade é um tapete, o resto é só com Deus na frente. A cada tanto uma barreira, uma revista no carro, verificação de documentos e uma propina inevitável para seguir viagem.

Parece que vai chover. No céu nublado, alguns relâmpagos. Goodluck se alegra. Gosta de dirigir com chuva, desde que amena. O chuvisco sempre o faz fugir deste mundo. Os limpadores do para-brisa o distraem, ficam dançando em sua frente, dirige sem pensar, por reflexos. Por isso - e também pelo clima - acha bem melhor viajar no verão que durante o harmatã, tempo de frio, de vegetação seca e poeira tapando a silhueta das montanhas. Vê que a mulher já dormiu, retira o pendrive, a música atrapalha seus pensamentos.

Enquanto todos dormem, ele divaga. A todo momento volta a pensar na encomenda de Nna Onyeocha e pensa em Mãe Preta. Quem é a Mãe Preta? Uma certa Cessa, que ajudou a criar os irmãos de Nna Onyeocha no Brasil. Ele era o mais velho e ainda se lembra dela. Diz que tem sonhado e que, no sonho, ela lhe diz que está em Lagos, que tem uma mensagem para ele. No sonho lhe deu um endereço, ele diz que acordou, se levantou e o anotou. Goodluck não consegue encontrar o endereço pela internet. Esse mistério acende a luz amarela. Que haverá nesse lugar? Será um templo em honra a Olorun? A Chineke? Ou um terreiro, como diz Nna Onyeocha? O coração acelera, não gosta da ideia, lembra-se do catecismo: a idolatria é o caminho do inferno. Mas há outras coisas em que está metido que são o caminho da prisão, inferno social.

Quase no destino, encontra um rebanho dos Fulani. São nômades, originários do Norte, e pastoreiam seu gado em qualquer lugar de área verde. Vagueiam por toda a Nigéria, atravessam fronteiras de outros países e invadem propriedades privadas, que não respeitam. Começam a atravessar a rodovia, os carros vão parando aos poucos, todos os temem. Um carro de luxo freia quase em cima de uma vaca e a atinge de raspão. A um comando, os pastores se enfurecem e avançam contra o veículo com facões, porretes e golpeiam o carro, quebrando vidros e amassando a lataria. O motorista dá uma ré e escapa na contramão. Quando o trânsito se interrompe por completo, o rebanho atravessa lentamente e vai pastar na colina em frente, ruminando o Universo.

Lokoja

Chega a Lokoja antes das onze e vai para um hotel conhecido. A eletricidade vai e vem, o gerador demora a ser ligado, em poucos minutos o calor e a umidade sufocam. A mulher se impacienta, os meninos brigam porque querem ver televisão. Reclama na portaria, dizem que logo vão consertar o gerador. Ao pensar que vai passar uma noite ali, com todo desconforto, enquanto podia aproveitar um dia a mais com a mãe, parentes e amigos em Owerri, Goodluck decide alterar abruptamente todo o programa do dia. Porém, com jeitinho:

- Querida, que tal se, em vez de jantar, almoçamos e seguimos viagem? Hoje à noitinha já podemos estar em Owerri com minha mãe.

- Jantar é muito mais romântico!

- Claro, se a gente estivesse sozinho. Com as crianças é igual.

- Queria tanto conhecer esse restaurante indiano! Vamos! Em Owerri você tem, outra vez, uma reunião, depois vai pra Lagos, sua mãe quer ficar a maior parte do tempo com você e não vai deixar a gente sair!

- Mas a gente sai no dia seguinte. Ela fica com as crianças ou as deixamos com baby-sitter. Vai ser jantar à luz de velas. Hoje mesmo. I promise. Só nós dois, como nos tempos de namoro.

E ela:

- Espero que sim. Hope so. Mas, na próxima vez, vamos jantar naquele restaurante indiano. Next time we will have dinner at that Indian restaurant.

Comunicam-se em inglês, mas ambos estudam o idioma um do outro, ideia de Goodluck. Os filhos já entendem e falam os três idiomas, inglês, Ibo, do pai, e Iorubá, da mãe. Goodluck acredita que Iorubás e Ibos, ou seja, que Olorun e Chineke têm de se unir para criar um novo país, e começa com o seu casamento. Poucos enfrentariam a família casando-se com mulher de outra tribo para ser coerente. Mais coerente ainda quando pensa em abraçar o movimento político que prega essa união.

Lokoja é cidade agradável. Goodluck identifica-se com o lugar e sua história, pois se considera também uma confluência. Não foi à toa que viajou por todas as regiões do país. Quantas vezes já passou por ali, no caminho da Ibolândia, terra ancestral dos Ibos, onde moram sua mãe e seus avós. Ali se encontram os dois rios, Benue e Níger. A cidade da confluência, passagem obrigatória para o sul do país.

Foi ali que a esposa do então Governador Geral, Lord Luggard, Flora Shaw Luggard, em 1914, teve a ideia de chamar essa colônia britânica de Nigéria, nome tirado do Rio Níger. Dizem que, numa tarde, contemplando o rio, veio-lhe a ideia de designar essa sopa de duzentas e cinquenta, ou mais, etnias, um emaranhado de línguas, dialetos, religiões e interesses conflitantes por um nome que tudo abarcasse: Nigéria. Num mesmo nome, todas as Nigérias. E a benção que amarra o país: o petróleo. Se não tivesse tanto petróleo, o país já teria seguido outros caminhos há muito tempo, teria diversificado a economia, ideia que se repete nos planos de governos desde a independência, mas nunca levada a sério.

Depois do almoço no restaurante indiano, pegam estrada de novo. A mulher, ainda chateada, e o casal de filhos vão passar em Owerri os quase dois meses de férias escolares de verão. Ele, depois de descansar, matar a saudade da mãe e visitar os parentes e amigos, segue para Lagos. Lá as duas incumbências: entrevista para o pós-doutorado em Londres e a encomenda de Nna Onyeocha. Sente uma grande resistência em entregar essa encomenda, não sabe como irá fazer e mesmo se fará.

Filho de Biafra

Biafra se separou da Nigéria em 30 de maio de 1967, e essa data ficou sendo a data nacional de um país que não existe. A guerra civil começou quase em seguida e só terminou em março de 1970. Eram os Ibos querendo separar-se do resto do país, confiados na riqueza do petróleo, que fica em suas terras, em três aviões de guerra e em três pilotos suecos. Os líderes de Biafra diziam que já estavam cansados de carregar o Norte nas costas. E seus sucessores continuam dizendo.

O resto do país voltou-se contra Biafra, porque Biafra se confundia com os Ibos. Três milhões morreram, dizem, e o sonho acabou. Para alguns, no entanto, foi apenas adiado: todos os dias 30 de maio de cada ano celebra-se o dia de Biafra, com manifestações pacíficas pelo reconhecimento do país. Porém, no calor das ruas, qualquer incidente faz eclodir a violência, porque as feridas da guerra civil nunca cicatrizaram. Os ódios continuam latentes. Goodluck, porém, começa a ter outra leitura da causa separatista: Biafra, como sonho apenas dos Ibos, é inviável. É preciso achar outra fórmula. Seria possível conciliar tantos interesses e conservar essa arquitetura política inglesa? Pergunta sem resposta.

Foi no início dessa guerra civil que seu pai apareceu, conheceu sua mãe e começaram a namorar. Era britânico, vinte anos mais velho que ela, a única mulher, a caçula que sobrou de cinco filhos. Toda a família de sua mãe estava completamente envolvida, seus quatro tios mais velhos morreram em combate em Nsukka, defendendo a universidade. Seu pai tinha os olhos de um azul inalcançável, e ela naufragou nessa busca sem glória. Não entra em detalhes, só diz que gostou dele de imediato, poucas e neutras palavras, mas o rosto iluminado desnuda o que porventura quer esconder. E ainda havia mais um ingrediente romântico: ele lutava por Biafra. Seu pai, embora estrangeiro, parecia mais um a sonhar junto com eles. Talvez tenha sido a gota d’água para fazê-la completamente apaixonada.

Mas Goodluck soube, mais tarde, que não era por idealismo que seu pai lutava por Biafra. Ele era mercenário, tão mercenário quanto o sedutor Conde Von Rosen, um dos três pilotos suecos. Lutou também no Congo Belga, em Angola e Moçambique. Era piloto e mecânico de aviões. A única lembrança concreta, além do próprio filho, é a foto em preto-e-branco na penteadeira da mãe, num garboso uniforme militar do exército de Biafra, o meio sol amarelo em destaque. Às vezes, pensa nos muitos irmãos que pode ter por esse mundo de Deus e se espanta por sentir carinho, quase orgulho, de seu pai. E se recrimina por isso, ao lembrar que ele o abandonou com meses de vida, assim que Biafra se rendeu.

Vó Cessa

Em 1950 e poucos, o portão de ripas da casa da avó rangia, e a gente sabia que era a negra Cessa chegando. Falava alto, cumprimentando os velhos:

- Ei Lurica, ei Zé. Tô entrando. Hoje vai cair um pé d`água. Olha lá na Cruz do Monte!

Atravessava o portão de ripas, fechava-o atrás de si, e se encaminhava a passos rápidos para o terreno baldio onde, no meio do capinzal, quaravam roupas. No jirau, secavam vasilhas de cozinha, areiadas, brilhando ao sol. As crianças olhavam de longe o reflexo do alumínio, espremendo os olhos para ver as cores do arco-íris entre os cílios. Os irmãos saíam correndo para encontrar Cessa, saltavam nos seus braços pra conseguir o primeiro abraço. Quase a derrubavam. Pano no cabelo, cheirando a pachouli, a preta Cessa vinha cuidar das crianças. A carapinha branquinha aparecia entre as dobras do pano na cabeça. A mãe ia levar uma das filhas a Belo Horizonte para tratamento e ficavam alguns dias. O pai tomava conta dos outros na parte da manhã, e Cessa de tarde, até ele voltar do trabalho e assumir de novo a responsabilidade. Cessa comanda a cena, dirigindo-se ao menino daquele tempo:

- Filho, cê já tá grande, já pode me ajudar. Cuida dos minino enquanto eu estendo a roupa no varal. Não deixa nenhum sair pra rua.

O menino daquele tempo acena que sim e pergunta:

-Vó, por que a senhora e Vô Fortunato são pretos?

- Nossos pais vieram lá da África. Lá todo mundo é preto, que nem a gente. Quem sabe um dia você vai lá? Mas primeiro tem que aprender a ler e falar a língua deles. Falando nisso, tá na hora de arrumar pra ir na escola. Pro banho já, meu amor!

Cessa fala alto, ri sem freios, às gargalhadas, está sempre alegre. Faz comida, lava, passa e ainda sobra tempo e ânimo para dar carinho. Passa de uma tarefa a outra, de um menino a outro, com destreza física e rapidez de raciocínio. Troca as fraldas do menor, enquanto dá banho em outro. Penteia o cabelo e ajeita na pasta os cadernos e livros daquele que vai pra escola. Vigia as panelas no fogão de lenha, cuida do feijão que está cozinhando, do arroz e da carne. Gosta muito de cozinhar, inventa receitas com cará, inhame e mandioca. Quando algum adoece, trata-o com ervas. Varre o chão e passa pano. É gente que trabalhou a vida toda, enquanto trabalha não para de falar:

- Meu pai e minha mãe vieram de lá, mas se casaram aqui. No navio, de dia, sol cozinhando; de noite, escuridão e frio; de vez em quando uma tempestade os açoitava que nem chicote. Todo dia morria um conhecido. Ih, o vento tá forte, apanha essa roupa que caiu aí no chão, meu filho. Melhor esperar passar a chuva pra pendurar a roupa... Pra ir na África tem que atravessar o mar.

O menino escutava, a imaginação completava. Uma das meninas disse:

- Olha o tucano que pousou no pé de mamão! Parece tá escutando a gente!

O tucano

Nna Onyeocha, guiado pela saudade, aterrissou de novo no meio dos irmãos, do pai, da mãe e de Vó Cessa. Estavam todos no quarador ajudando-a a estender roupa. Enquanto isso, comentavam a morte do cachorro Sultão na manhã daquele dia.

- Ficou zangado, babando o tempo todo, precisou de três homens para matá-lo.

Os meninos choraram, acompanharam o enterro, o cachorro sendo arrastado pelo quintal, e um filete de sangue marcando o caminho. Numa cova de pé de café abandonada, o avô deu algumas enxadadas, abriu o buraco, e o cachorro ficou para sempre. O menino daquele tempo marcou o lugar com uma cruz de graveto. O pai tentou explicar o inexplicável, sentimento de culpa, porque foi ele quem deu o tiro de misericórdia.

Nna Onyeocha, agora, tinha certeza: foi naquele tempo que começou essa viagem. Sem saber, já se preparava para cruzar o oceano e instalar-se na África. De lá, ia refazer o caminho de ida e volta dos ancestrais de Vó Cessa num navio de pesquisa, de Badagry ao Cais Valongo, no Rio de Janeiro, porém numa situação confortável. Durante essa viagem, imaginou a caminhada dos cativos da vila de Badagry até a lagoa rente ao mar, o embarque nas balsas atulhadas de prisioneiros e a chegada na outra margem. Dali até chegar aos navios, a última caminhada sem volta em solo africano, os disparos de arma de fogo contra os fugitivos tardios, talvez reis, príncipes, conselheiros e guerreiros em suas tribos, que preferiam a morte àquele destino.

Cessado o reboliço da caminhada, entregues a seus donos, era a vez do embarque definitivo nos grandes navios ancorados na baía, as âncoras levantadas. Os pesados veleiros enchiam as bochechas, se amigavam com o vento e partiam em direção ao Rio de Janeiro, Bahia, Cuba, Haiti e outros lugares que ansiavam por aquela carga.

Abuja

Nna Onyeocha veio à Nigéria para um estágio na Universidade de Abuja por dois anos, para especializar-se em Literatura e Cultura Africana. Seu principal interesse eram as religiões nativas, demonizadas pelos colonizadores, hoje apenas toleradas como manifestações culturais ou quando assimiladas discretamente pelo sincretismo religioso com o Islamismo ou o Cristianismo. Logo depois de chegar, conheceu a mãe de Goodluck, fisioterapeuta da Universidade, que o tratou de um problema na coluna. Foi empatia à primeira vista. Seus grandes olhos verdes atraíram-na, porque, de alguma forma, recordavam o azul dos olhos do pai de Goodluck. Quando terminou seu estágio, decidiu que ia voltar ao Brasil, aposentar-se e voltar para trabalhar na Universidade e continuar os estudos. Queria viver na Nigéria para pesquisar, traduzir livros e conhecer mais a fundo tudo aquilo que lhe fascinava. E justificava:

- Todo brasileiro tem raiz africana. O avô materno de meu filho, por exemplo, nasceu escravo. Vim aqui para resgatar minha parte.

Quando o conheceu, depois do serviço voluntário, Goodluck projetou em Nna Onyeocha todo o amor que queria ter dado a um pai de verdade. Imaginou que sua mãe iria viver com ele, tinham quase a mesma idade e interesses comuns. Os dois gostavam de música e literatura, passavam horas conversando, mas Nna Onyeocha era reservado quanto ao passado. Goodluck fantasiou a união que não aconteceu. Mas os dois ficaram amigos, mesmo depois que ela se aposentou e voltou para Owerri. Aquela amizade era, pelo menos, um consolo para Goodluck.

Enquanto trabalhou na Universidade, viajou muito. Nos primeiros anos, conheceu Enugu, Nsukka, Owerri, Port Harcourt, Ifé e Benin City. Em Lagos e Badagry, por causa da presença de descendentes dos escravos brasileiros retornados à África, instalados na região de Popo Aguda, e do festival anual da herança negra, passava alguns meses por ano. Ao Norte, viajou pouco, seus interesses estavam nos lugares de onde partiram os escravos para o Brasil. Nessas andanças, aprendeu um pouco de Iorubá e Ibo e, como parte de um documentário feito pela TV nigeriana, do qual escreveu o roteiro, fez a viagem de ida e volta na rota dos escravos. Mas está se aquietando, ensimesmando-se, a idade começa a pesar.

O Norte

Owerri é a cidade natal de Goodluck. Antes da Universidade, estudou no seminário católico. Teria sido padre se o avô não tivesse impedido, porque exigia que o neto mais velho tivesse família. Viveu em Owerri até terminar a universidade. O sonho era conhecer todo o país e resolveu fazer o serviço voluntário no exército em Kaduna, no Norte, no meio dos Hausa e Fulani. Foi sua escolha, a mãe e os avós pediram que ficasse por ali, mas ele queria conhecer as particularidades de cada região enquanto era novo. Subiu para o Norte, passou um tempo em Kano, e foi conhecer Borno e Sokoto, de maioria muçulmana. Passou dois anos entre os descendentes dos cavaleiros do deserto, que só não conquistaram o restante do país porque esbarraram com a selva, e suas montarias foram dizimadas pela mosca tsé-tsé.

Por todo lado fez amigos, aprendeu Hausa e a cultura local, identificando, porém, as cicatrizes latentes da guerra. Os cristãos do Sul, a qualquer desentendimento, são chamados de “infiéis” pelos muçulmanos no Norte; já os muçulmanos, vivendo no Sul, ficaram estigmatizados pelos massacres de Ibos, antes, durante e depois da Guerra de Biafra. No Norte muçulmano, dois costumes o assustavam – e que lhe mostravam os profundos contrastes culturais do país - meninas são desencorajadas de estudar e induzidas a se casar muito cedo, configurando o que a ONU chama de casamento infantil, causa de muitas mortes no parto. Seu sangue libertário não pôde deixar de revoltar-se. Mas ponderava:

-Já foi pior. Antes, eram proibidas de estudar. Agora, só desencorajadas. E a ONU pressiona o governo para proibir o casamento infantil. A cultura não muda aos solavancos.

Quando terminou o serviço voluntário, no retorno a Owerri, os ex-colegas de universidade o encontravam e diziam, alguns troçando dele:

- Agora você já pode ser presidente. Conhece todas as Nigérias!

Ele apenas sorria. No íntimo, pensava:

- Gostaria, mas cada dia vejo aproximar-se o início do fim.

Owerri

No retorno do Norte, teve certeza de que Owerri é que é seu pouso, sua referência principal na vida. Quando passa muito tempo sem visitá-la, sente um aperto no coração. Ali estão os amigos, a mãe e os avós, já velhinhos. Conhece todos os cantos. A cidade já não é a mesma de sua infância, cresceu e já tem uma periferia muito pobre. Mas continua sendo seu refúgio.

A algazarra das crianças interrompe seus pensamentos.

- Ei, ei, chegamos - gritam felizes ao avistar a avó na porta do edifício, já esperando por eles. Quase saltam do carro em movimento.

Chegam ao apartamento da mãe, tudo é festa. Os filhos correm para abraçá-la. Ela também faz festa, não consegue esconder a alegria de revê-los. Quando os meninos e a mulher vão para a cozinha e dão um tempo, é hora de abraçar e ser abraçado. Às vezes ficam em silêncio, só se olhando, encontros de almas numa outra esfera. A mãe sempre tem um assunto novo, está sempre atualizada, lê jornais, vê televisão, e, pela internet, acompanha o que se passa neste mundo cada vez mais louco.

- Kee kwanu?

- Odi’mma, estou bem. Mas muita, muita saudade de você. E Nna Onyeocha?

- Bem. Mas não quis vir. Estou preocupado com ele, acho que está caducando. Fala sozinho, mistura passado e presente. Tá faltando muita eletricidade em Owerri?

- Como sempre. Mas vão instalar um gerador gigante no condomínio. Claro, vão aumentar o aluguel para pagar o óleo diesel.

Hora de jantar. Como sempre, ela mesma prepara a sopa de egusi com fufu de inhame, refeição preferida de Goodluck, os meninos também adoram. Quem dera que sua mãe e Nna Onyeocha tivessem se ajuntado! Poderia estar ali agora, em vez de sozinho em Abuja. Faz vinte anos que ele apareceu nas suas vidas, podiam ter formado a família que ele sempre imaginou. Mas não deu certo, o que fazer? Pelo menos, há amizade entre os dois.

À noite sai para a reunião. O clima é tenso, e há muitas decisões a tomar, mas fica tudo adiado para o ano, talvez no próximo 30 de maio. Falta apoio dos Iorubás em Lagos e Ifé, falta unir Chineke e Olorun, os deuses ancestrais dos Ibos e Iorubás, mas há outros deuses na fila. Percebe que alguns exaltados, de um lado e outro, podem por tudo a perder. Um deles, o mais exaltado de todos, é conhecido como Mr. Gun e esteve em todos os encontros.

Goodluck já foi impaciente, agora sabe conter os impulsos. E lembra que as feridas da guerra de Biafra ainda estão sangrando. Pede a palavra, pede calma. Às vezes, passa-lhe pela cabeça que sua luta é inglória, que é impossível unir tantos interesses e sente-se descorçoado.

O outro dia transcorre entre visitas a amigos e parentes, mata saudades. De noite, o jantar prometido, não em restaurante indiano, mas o prato escolhido, sim. Uma ou duas quedas de energia não interferem no bom humor de sua mulher. Ele pagou metade da promessa, mas sabe que vai ter de completá-la algum dia em Lokoja.

Na manhã seguinte, bate à porta do quarto da mãe para despedir-se. A mulher e os filhos ficam dormindo e não o veem sair. Não se incomoda, está acostumado.

Lagos

Goodluck vai absorto nas lembranças e nos projetos, dirigindo quase sem se dar conta. Tem passado, mas também futuro. O pós-doutorado em Londres é a bola da vez. Retorno para toda a família, experiência fantástica para a mulher e os filhos. O tema é “A Herança Britânica e o Futuro da Nigéria”. O texto já foi aprovado, falta só a entrevista. A conclusão é anti-britânica, porque adverte sobre o esfacelamento da Nigéria. Porém o que mais enche sua cabeça é o pedido de Nna Onyeocha. Por alguma razão, tem medo da resposta que lhe vão dar, embora não saiba nem se vai ter coragem de entregar a encomenda.

Chegando às proximidades de Lagos, o trânsito se tumultua a cada quilômetro e começa a trancar. Cerca de vinte milhões de pessoas vivem na região metropolitana. Nas paradas de ônibus, as multidões se acotovelam e se espremem para entrar, os vendedores competem agressivamente pelos compradores: nada diferente de qualquer metrópole do mundo. Os mendigos parecem zumbis, aproveitam o trânsito trancado e esmurram os carros, implorando comida. As favelas vão aparecendo à medida que se entra na cidade e escancaram suas entranhas.

Lagos era um assentamento Iorubá e já existia muito antes com o nome de Eko. Desde 1404 até o Sec. XIX, foi o porto de escravos controlado pelos reis Iorubás. Hoje é uma metrópole, foi capital da Nigéria até 1961, quando Abuja foi inaugurada. A pobreza não se esconde, mas também são visíveis as galerias de arte, cafeterias e shoppings de luxo em Victoria Island. Na periferia, a maioria das casas não têm banheiro nem rede de esgoto e muitas doenças se originam da carência sanitária. A eletricidade é cortada a cada tanto, como em todo o país, às vezes por dias, semanas, e a solução, para quem pode com o preço do diesel, é o gerador.

Goodluck observa tudo, mas procura concentrar-se na entrevista e na entrega da encomenda de Nna Onyeocha. Para entregar o envelope, seu foco é Popo Aguda, antigo bairro de Lagos, onde há um centro comunitário ligado às tradições dos escravos retornados do Brasil. Sabe que por ali vai encontrar um certo endereço que Nna Onyeocha lhe passou, local onde tem que entregar o envelope e seu conteúdo. Deve estar ficando louco, pensa. Esse endereço foi Vó Cessa que lhe passou no sonho, ele levantou-se e copiou, e ele acreditando! Por que está seguindo essa trilha? Quando chegar a hora, vai pegar táxi para não submergir naquele outro tipo de inundação: os engarrafamentos monstruosos de Lagos. Já basta de sobressaltos.

A noite passada no hotel foi um carrossel de pesadelos. Sonhou que estava na Bahia, em um ritual de candomblé. Ao mesmo tempo, estava num templo em Ifé, terra ancestral dos Iorubás. Vó Cessa e sua mulher eram as ialorixás e dançavam em transe. Seus rostos se deformavam e cresciam à medida que se aproximavam dele, murmurando palavras ininteligíveis, e ele despertava aterrorizado. Pegava no sono de novo, mas os pesadelos voltavam. Num deles, era o capataz e chicoteava cruelmente seu pai biológico que escapava e se escondia na foto em preto-e-branco da penteadeira de sua mãe. Em outro, os prisioneiros se desvencilhavam dos grilhões, transformavam-se nas vacas magras dos nômades Fulani e se atiravam na lagoa de Badagry. E num terceiro, um político manda cortar-lhe a cabeça para oferecê-la em sacrifício aos deuses e ganhar as eleições. Acordou de manhã com o despertador, suado e exaurido. Levantou-se de uma vez, rezou o Credo, fez a barba, banhou-se e foi tomar o café-da-manhã. Imediatamente, saiu para a entrevista.

Os dois sabatinadores britânicos o seguraram por umas duas horas, ele queria que durasse mais ainda e que se adiasse ao máximo o encontro em Popo Aguda. Já tinham lido e aprovado seu projeto, mas a entrevista era um complemento que podia invalidar o trabalho. Imaginou que não conseguiria passar uma boa impressão para os sabatinadores, pois tinha os olhos vermelhos e o rosto cansado das torturas noturnas. Sua mente tentava prestar atenção às perguntas e dar respostas condizentes. Mas o pensamento focava obsessivamente Popo Aguda, e no que poderia acontecer à tarde.

Saiu ainda mais extenuado da entrevista, sentiu fome, fraqueza, e foi direto a um restaurante que se dizia brasileiro e comeu churrasco, bem parecido ao que Nna Onyeocha fazia quando era mais novo. Alguns garçons falavam português com sotaque africano. Uma mulher de uns sessenta anos o olhou fixamente, de alto a baixo, como se o tivesse reconhecido. Por um momento, passou pela sua cabeça que era a Vó Cessa dos sonhos, mas afastou aquele absurdo da mente.

Perambulou por Victoria Island, olhou vitrinas de lojas elegantes, adiando ao máximo o que não queria fazer, mas, já de tarde, quando não suportava mais a ansiedade, parou um táxi e pediu que o levasse àquele endereço do envelope. O taxista apalpou discretamente o envelope, leu o endereço, olhou-o no rosto por um instante, mas não fez perguntas. Arrancou o carro e se meteu por ruelas e becos, subiu e desceu meios-fios, andou perigosamente na contramão, tudo para evitar os engarrafamentos. Quando chegaram, Goodluck pagou e desceu. Caminhou uns passos, mas, sem saber por quê, virou-se de novo para trás. O taxista estava imóvel, parecia que esperava por aquilo e perguntou de chofre:

- Ogá, o senhor quer que eu mesmo entregue, não quer?

- Quero. Espero ali naquela cafeteria.

- Vai demorar umas duas horas, Ogá. O homem cobra seis mil nairas. Tem a taxa da polícia.

Na cafeteria, pediu uma dose de uísque, algo que não fazia há

muitos anos. Enquanto sorvia lentamente a bebida, começou a sentir as conhecidas ondas elétricas subindo pela espinha até a nuca, os cabelos eriçando-se e o rosto pegando fogo. Será que era a glândula pineal, que, dizem, é nossa antena com o mundo espiritual, escaneando a energia do lugar? Seria o lugar próximo de um terreiro, como diz Nna Onyeocha? Ou o quê? Sacudiu-se, para afastar aquela sensação que parecia querer levá-lo a um redemoinho e voltou a concentrar-se no movimento da cafeteria para passar o tempo.

Quando o taxista retornou, trazia o mesmo envelope com alguma coisa minúscula dentro.

- O homem do templo pediu pra ter cuidado, é um pendrive.

Goodluck agradeceu e pediu que ele mesmo o levasse ao hotel de novo. Na chegada, pagou pelo serviço, o taxista acelerou e desapareceu no meio da floresta de carros e gente. Naquela noite, sonhou o tempo todo com Vó Cessa, como a imaginava. O sonho, dessa vez era tranquilo. Ele era criança de novo, da idade de seu filho, e ela o abraçava com carinho. Falava Ibo com ele e lhe contava as histórias que ouviu de sua mãe.

Extenuado, dormiu até o meio-dia, arrumou-se rapidamente e foi direto para Abuja, ansioso por livrar-se daquele peso. Do banco de trás do carro, retirou o tecido pintado com o meio sol amarelo. Tinha que substituir esse símbolo, não lhe serviria mais.

O lago Jabi

Ao chegar a casa, entregou o envelope para Nna Onyeocha, que o esperava na porta da quitinete, os grandes olhos verdes quase saltando das órbitas de tanta ansiedade. Ele abriu o envelope sem perguntar, Goodluck percebeu suas mãos tremendo, colocou fone de ouvido e o pendrive no computador. Enquanto escutava, ria e derramava lágrimas furtivas, ausente do mundo. Quando acabou, enxugou os olhos e guardou o pendrive na gaveta de sua escrivaninha.

- Quando eu for embora, você ouve. Mas só depois.

E voltou para sua quitinete. Ficou mais quieto nos dias seguintes. De vez em quando, ia vê-lo para conversar um pouco, ver se estava bem. Na ausência da mulher, via crescer sua responsabilidade. Porém, não via nada de anormal, a não ser a obsessiva organização de papéis, a limpeza metódica da casa e a separação de livros para doar.

Uns dias depois, o chamou:

- Te quero dar umas coisas.

De um sacola de plástico, tirou medalhas esportivas, troféus literários, algumas revistas antigas, fotos em preto-e-branco. Eram coisas que tinha guardado pela vida afora e tinham viajado com ele em sua existência cigana. Eu pensava no valor que teriam, mas ele me passava como se não precisasse de mais nada daquilo.

- Fica pra você...

Olhou-me no fundo dos olhos, vi que tinha algo a dizer, mas não foi em frente. Aproveitei para puxar outro assunto, cortando nossas angústias pela raiz. Creio que, no fundo, achou bom não seguir a conversa.

Um dia, o vi de barba grande e muito desanimado. Para animá-lo, lhe disse:

- Vou fazer sua barba. Vem aqui na frente do espelho.

Sentou-se, enrolou uma toalha no pescoço e disse:

- Quando terminar, traz o espelhinho. Quero ver de perto. Se precisar retoque, te falo.

Antes de começar, ele sentado e eu de pé, abracei-o por trás, à altura dos ombros, e apertei-o como nunca tinha feito antes. Em seguida, acariciei seus vastos cabelos e o rosto macilento, primeiro por ternura, depois para avaliar onde estavam exatamente suas verrugas e não machucá-lo. Daí, comecei a passar-lhe o creme de barbear. Ficou quieto, fechou os olhos. Depois, disse, sem abri-los:

- Cessa me disse que você tá fazendo coisa errada.

- O que? Eu? Cessa?

Aquilo me assustou. Retirei a lâmina de repente de seu rosto e quase o feri. Ele percebeu.

- Que coisa errada?

- Política é perigoso. Muitas vezes, vira guerra e guerra é sangue derramado, só ganham os mercadores de armas, os que não lutam. E, agora, você tem família pra criar. Se der errado, quem vai pagar suas contas? Mr. Gun? Não precisa responder. Já passei o recado, você é que sabe agora o que fazer. Pode terminar a barba, quero ver como ficou.

Terminei de fazer sua barba. Guardei os apetrechos e continuei em silêncio. Trouxe-lhe o espelhinho para ele ver mais de perto o resultado. Estava ótimo, disse. Não levei adiante sua conversa, mas o coração batia apressado, tão apressado que ele devia ouvir. Como Vó Cessa podia saber de Mr. Gun e do que se tratava nas reuniões? Não dava para entender. Se fosse alguém do nosso meio... Mas aquilo não deixou dúvidas: os dois sabiam do meu segredo. Nem a minha mulher tinha contado, não podia envolvê-la, se acaso fosse descoberto e preso.

Dias depois de sua partida, andei pela quitinete vazia.

Recordava-o em cada cantinho, em cada uma das coisas que não teve tempo de arrumar, a cozinha asseada, os poucos talheres, pratos e panelas, o feijão no congelador, na estante os livros que não tinha doado, na certa deixados para mim. No alto da estante, chamou-me a atenção a falta do Chi, a pequena imagem que equivale ao próprio espírito do dono na religião ancestral do povo Ibo. Teria dado de presente a alguém? No quarto, fechado desde a sua partida, por muitos dias, ainda ficou no ar um perfume de pachouli.

Porém, como os falcões em círculos no céu mirando a presa, meu sentido era unicamente abrir a gaveta da escrivaninha. Finalmente, tive coragem. Abri-a e me dilacerei na dúvida entre colocar ou não o pendrive no computador e saber o segredo. Venceu o medo, e o joguei no Lago Jabi. Não queria confirmação da existência daquele outro mundo, se é que era daquilo que se tratava.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 01/11/2016
Reeditado em 10/03/2017
Código do texto: T5809684
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