O andarilho

O andarilho

Pisei num graveto. O estalo seco da madeira sem seiva foi forte. Esse simples som parecia arrebentar meus tímpanos e me trazia a ideia de ter pisado em ossos secos. Abaixei-me e tomei o galho pisado. Não, não era um graveto! Era um galho duma árvore desconhecida. Não sei há quanto tempo estava ali naquele chão verde da mata.

Resolvi mudar o destino do galho quebrado. Como pisara bem próximo a extremidade esquerda do agredido, acabei por não reduzir muito do seu tamanho. Ainda havia uma bela peça de madeira a ser transformada por mim em cajado. Foi o que pensei. Seria meu cajado. E assim livrei um corpo da decomposição. Não o transformei em charmosa bengala dum dândi. Como espada sua sorte seria terrível. Faltou-me nobreza para transformá-la em meu cetro de rei. Não sou dândi, não sou gladiador e nem soberano de nenhuma casa real. Em realidade, sou um andarilho sem rumo.

E segui meu caminho. Uma cobra tentou o bote. Acertei a vara em cheio na cabeça do bicho e segui pelo campo. O capim era alto. Dessa vez o cajado serviu de foice. Atravessei o rio e a vara mostrava onde dava pé.

Na outra margem, a caatinga. Os espinhos arranhando minha pele. Afastava os arbustos com o galho que carregava. Andei e cheguei a um lajedo. Caminhei com sol a pino. Os rios secos. Sede. Fome. Cansaço.

Cheguei ao deserto. Somente areia e céu. E calor. Nenhuma nuvem. O horizonte tremulava. O solo se ondulava e se revolvia. Lagartos e serpentes apontavam suas cabeças com línguas vibrantes asquerosas. Seria eu a refeição? Quisera eu jogar meu cajado ao chão e vê-lo transformado numa serpente maior que devorasse as demais daquele cenário. Ergui o bastão para o alto em total desespero. Águias imensas e tantas fizeram, por instantes, sombra sobre mim. Breve refrigério. Arremeteram-se ao chão em tal fúria e velocidade a ponto de nenhum dos répteis sobrarem.

Subi montanhas de pedras escarpadas. Minhas mãos sangravam. Meus pés todos cortados. Encontrei neve e cicatrizei meus ferimentos no gelo. O gelo tem sido, ao longo de minha vida, um grande amigo. Anestesia-me sempre que necessário e meus músculos voltam a funcionar sem hematomas. Congela pessoas indesejáveis durante o tempo preciso da minha permanência em ambientes comuns.

Num raro momento de retorno à infância, deitei-me sobre a neve. Meu corpo era meu próprio trenó e o cajado o freio. Fui descendo até a planície. Taiga e tundra. Flores minúsculas, líquens e musgos como os que revestiam meu cajado.

Cheguei a um bosque de pinheiros. Um raio havia acertado algumas árvores. Uni-as numa jangada. Desci as corredeiras e cheguei ao mar. O cajado era um remo. Naveguei dia e noite. Onda por cima. Onda por baixo.

Cheguei a uma praia. Coqueiros e palmeiras. Agora caminhava bebendo água de coco. Entrei no mangue. A lama grudava. Cheguei com as pernas petrificadas a foz dum rio. Banhei-me. Andei pelas margens e cheguei a um pequeno lago com cachoeira e uma caverna. Nadei até me cansar. Entrei na caverna. Finquei o cajado entre as pedras como cabideiro. Pendurei minhas roupas e memórias. Passei a viver nu e invisível naquele microcosmo para sempre.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 08/11/2016
Código do texto: T5816698
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