impossível esquecer...

Relato de uma ex-interna de um manicômio Brasileiro.

Tudo começou por volta do ano de 1949, eu com 20 anos, de personalidade muito forte, comecei a ter atritos familiares, meus pais me achavam muito masculinizada, porque eu odiava e continuo odiando vestidos , saias e trabalhos domésticos, na época estudava o segundo ano de direito e isso já era uma grande afronta para os meus pais que sonhavam que eu me entregasse a carreira do magistério como minha irmã ,11 meses mais nova.

E, em uma de nossas discussões eu ouvi meu pai dizer a minha mãe que ia me internar, nunca imaginei que teriam coragem, mas numa tarde ouvi meus pais recebendo umas pessoas e quando eu saí para ver quem eram, me seguraram a força e eu acordei num camburão amordaçada e apanhei muito até chegar no próprio inferno.Quando me puseram para fora,

e aos empurrões me levaram para um quarto sujo, sombrio , muito frio...Comecei a gritar e a perguntar ,porque eu estava sendo deixada ali, a essas alturas, penso eu, que a droga aplicada para me renderem, já tinha deixado de fazer efeito.Dois enfermeiros riam de mim o tempo todo,me perguntando, o que eu estudava mesmo , diziam para todos ouvirem que eu ia ser advogada no inferno, e quanto a isso, eles diziam a verdade...Passou-se seis meses, fui abusada sexualmente por dois enfermeiros, por varias vezes, tive as mãos amarradas por 10 dias seguidos de modo que eu não podia comer e nem fazer minhas necessidades fisiológicas básicas e quando eu não conseguia mais segurar , fazia na roupa e ficava ali, suja, imundamente suja, pedindo a todo instante para morrer...Em um desses dias me peguei comendo fezes...foi aí que eu percebi que eles estavam me enlouquecendo e eu não ia permitir que isso acontecesse, naquele momento, pensei comigo...Deus me abandonou,

mas eu não irei me abandonar e comecei a usar o meu sofrimento a meu favor...

Naquele lugar qualquer um enlouquece, eu nunca me aprofundei no assunto, mas lhe asseguro que , apenas 10 por cento daquele mar de sofrimento eram loucos, os demais enlouqueceram ali.Interpelei nos corredores imundos um dos médicos, era jovem , eu nunca tinha o visto por ali,(eu já tinha pedido ajuda, a muitos...E fui ignorada por todos)no submundo de um manicômio é assim,ou pelo menos era, eu sinceramente choro só em imaginar que alguém pode estar passando nesse momento, as angustias e terrores que uma mente sã, pode sentir dentro de um corpo aprisionado pela demência que não existe.Lá ninguém leva em conta a dor do outro, ou um apelo, um grito...Aliás, lá os gritos eram tão comuns!...Lá os gritos se faziam silêncios profundos na mente de cada um dos que ainda tinha um fio de sanidade.

E eu tive a sorte daquele médico me ouvir...A principio pedi ajuda, e ele quase sussurrando me pediu para entrar numa sala a nossa frente, lá ele me ouviu com calma e fez alguns testes, por certo pediu a direção que queria estudar o meu caso e o fez, comecei a ver uma faísca de luz no fim de um túnel infinito, depois de muitos anos, vim a saber que esse médico era filho de um dos diretores, naquele dia eu sorri internamente e pensei; É Deus se lembrou de mim novamente!O médico me dava orientações de como agir, com os enfermeiros e outros internos, juntos tentávamos achar um meio para que eu saísse de lá, até que eu pedi para ele procurar minha irmã, e contar tudo a ela...Minha doce Irma , ainda que muito submissa aos meus pais foi me ver pela primeira vez no ano de 1952, três anos após a minha internação, e quando ela se aproximou de mim, estava pálida, trêmula, tive a impressão de ter virado uma alienígena aos olhos dela, pude perceber na sua feição um terror indescritível, e quando ela me abraçou , só conseguia me dizer, que faria de tudo para me ajudar e repetia, perdoe-me, perdoe-me...Mas ela não teve culpa alguma, meus pais não ouviam as filhas.Sempre fomos muito vaidosas e tínhamos recursos e eu ali, não tinha nem roupas, varias vezes acordei nua, porque a noite os internos arrancavam as roupas do corpo, uns dos outros, todos os dias eu agradeço por não ter engravidado em função dos estupros que suportei e hoje com 86 anos , as vezes acordo com a impressão de estar sendo estuprada novamente e fico por horas tomando banho , coisa que não podíamos fazer naquele tempo, porque banho não era uma situação normal ali dentro.Nunca vou me esquecer dos gritos de uma menina de 13 anos que numa determinada noite, foi pega por uns internos que a estupraram ,e eu sai, correndo para ajuda-la, mais fui detida pelos enfermeiros que viam tudo e riam, e diziam uns aos outros deixem esses loucos se divertirem um pouco com essa outra louca, assim amanha estarão mais calmos...

Eu sai do inferno dos infernos nos ano de 1955, com a ajuda minha Irma e desse médico, fui morar com uma tia em são Paulo e minha mãe só soube que eu não estava mais internada na morte do meu pai no ano de 1958, quando eu apareci na sua frente...Fui a pedido de um grande amigo que achava que eu devia perdoa-lo, ou perdoa-los, mas confesso que diante do caixão dele, senti ódio por ele ter passado por essa vida, sem ficar pelo menos 10 dias naquele lugar, 6 anos como eu fiquei não...Isso eu não desejaria nem para o próprio diabo, mas 10 dias seria o suficiente , eu nunca mais olhei para a minha mãe, pois, só em lembrar do seu rosto, o meu corpo se retorcia em cóleras e eu sentia muita vontade de vomitar, por varias vezes dormindo naquele limbo, eu sonhava que minha mãe chegava e me pegava no seu colo e me fazia dormir, mesmo sofrendo eu acreditava piamente no amor de mãe que deveria ser incondicional e eu sei que algumas mães, nunca vão nem saber o que é isso, eu não tenho religião , não acredito nas pessoas, exceto no meu marido e nos meus três filhos, eu trago no meu peito uma dor tão imensa que precisei ter uma coragem descomunal para sobreviver,

nunca fui feliz embora a vida tenha me recompensado de muitas formas, com a morte do meus pais, passei a administrar a fortuna deles, eu mesma retirei desse mesmo manicômio três crianças que hoje são médicos psiquiatras, eram bebês nascidos lá, em função provavelmente de algum estupro, tive um filho meu que faleceu aos 15 anos de leucemia e te confesso que pedi muito para ir com ele, ou ir no lugar dele, não me formei em direito, porque depois de tudo que passei, as leis para mim, são apenas um amontoado de mentiras, fui muito amada pelo meu marido e sou pelos meus filhos, dois clinicam na Alemanha e uma aqui, essa teve muitas oportunidades lá fora, mas ficou comigo, e é para mim, uma espécie de anjo, a filha que eu gerei no coração, os três são, mas ela é especial, não a acompanhei porque não ando de avião, o cheiro do avião me lembra algo que esta aprisionado no meu inconsciente, do qual nunca me livrei e nem irei me livrar...

Sabe moça, saiba de uma coisa, esse negócio de inferno não existe, porque não pode existir algo pior do que aquilo, não pode.AQUILO É O INFERNO E PONTO.

Esse texto é uma criação fictícia.

ValquíriaCordeiro
Enviado por ValquíriaCordeiro em 15/11/2016
Reeditado em 15/11/2016
Código do texto: T5824413
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