AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 17 - UM SARAU DIFERENTE

Ademar e Lola eram muito amigos. Cresceram juntos, casas coladas, estudaram na mesma escola, mesma classe (quase todo o tempo), escolheram o mesmo curso universitário (letras), na mesma faculdade e (claro) turma. Não se largavam nunca.

Quando juntos, riam muito, conversavam muito, estudavam e liam muito, escutavam as mesmas músicas, assistiam aos mesmos filmes, apreciavam o mesmo tipo de comida e tinham seus segredinhos, o que não agradava muito aos pais, mas como todos em volta acreditavam que os pombinhos se amavam e acabariam se tornando marido e mulher, toleravam tudo.

O que ninguém imaginava era que ambos eram homossexuais, e morriam de medo que alguém descobrisse a situação, então se apoiavam, mutuamente, para encobrir a questão. O fato de se darem bem e terem gostos semelhantes ajudava muito, porque se assim não fosse, a barra pesaria pra valer, pois a região onde viviam era, majoritariamente, formada por gente muito conservadora e puritana, que não tolerava o que fugisse às convenções estabelecidas.

Terminaram a faculdade, fizeram pós, tornaram-se doutores e permaneceram no meio acadêmico, como pesquisadores e lentes. Daí pra frente ficou difícil segurar a barra sem que tivessem a iniciativa de contrair matrimônio. Festa, padrinhos, lua de mel (só pra constar) e um obstáculo complicado de transpor: um netinho para os nonos. Tava na hora, né?

Para despistar, afundaram nos compromissos profissionais, multiplicaram projetos e monitoramento de alunos, participavam de todos os congressos e convenções que surgiam em qualquer canto do país ou do exterior. Passavam meses sem ver familiares, mas bastava só um minutinho de visita ultra rápida e o assunto tenebroso vinha à tona. Como desconversar?

Com tanta aplicação ao trabalho e estudo, tornaram-se referência no meio acadêmico e literário, sendo requisitados para muitas empreitas ou consultas de bom nível. Se não fosse o medo medonho de serem descobertos, estariam curtindo a fama e o sucesso. Porém, quando a urticária nervosa já lhes apurrinhava um bocado, surgiu Ivanir. E aí tudo mudou.

Ivanir era uma pessoa culta, PHD, lingüista, admitida como pesquisadora pela mesma escola, muito alegre e sorridente, mas tinha um jeito bem andrógino. Logo nos primeiros dias de atividade, ninguém sabia ao certo definir seu gênero, tal o jeito de se vestir, gesticular e ser. Embora percebesse a estranheza à sua volta, a figura não dava a mínima para o rebuliço, e até se divertia em confundir a cabeça de uns e outros. Em certos momentos tendia a demonstrar masculinidade, mas logo a seguir ensaiava trejeitos femininos, enlouquecendo o povo.

Ademar e Lola assistiam a tudo isso pasmos, e não demorou a que Ivanir os abordasse, dizendo saber, claramente, o que ambos escondiam debaixo da postura apresentada. Mesmo que negassem, a princípio, acabaram por entregar os pontos, extenuados. Na segurança de sua casa, receberam o novo amigo (ou amiga?) e ali tiveram conversa esclarecedora, ficando boquiabertos em sabê-lo hermafrodita. Por isso a opção pela androginia e ambigüidade.

Vendo que o casal sofria sem conseguir sair do armário, Ivanir resolveu ajudá-los.

Encaminhou projeto de sarau literário (mesmo que sarau já tenha finalidade literária) no nordeste, bem longe da terrinha original de suas famílias, em local praiano, paradisíaco, cuidou para que participassem pessoas afins (em vários sentidos), e providenciou para que o material de apreciação fosse de ótimo nível, mas também de grande apelo emocional.

Apesar das recusas e desculpas dos dois, a coisa acabou acontecendo, e lá se foram todos para a festa, que logo ao chegar descobriram que aconteceria em praia de nudismo. Não conseguiram opor resistência e logo se despiram. Ainda intimidados e tapando suas vergonhas como dava, aceitaram umas bebidinhas, que provocaram calor e malemolência. Relaxaram.

Em pouco tempo estavam declamando versos, cantando toadas, rindo, sem se dar conta de que estavam nus em pelo, como todos em derredor. E não demorou para que os rapazes se juntassem num local, junto com Ademar, e as meninas em outro, com Lola. Havia um terceiro grupo de indefinidos, que acompanhavam Ivanir, e todo mundo festava a não mais poder.

Nunca mais voltaram para casa. Ali mesmo, na região, fundaram uma academia literária, uma escola e uma editora, em conjunto com outras pessoas de suas relações (íntimas, até), e quando receberam a visita de parentes, estes estranharam que tanta gente vivesse na mesma casa, e todos (o casal original, inclusive) se vestissem e agissem de modo tão peculiar.

Ademar, Lola e Ivanir viviam soltos e realizados, e queriam fazer novo sarau de pelados no próximo ano, que os locais insistiam em chamar de suruba literária. Arte incompreendida.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 19/11/2016
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