Esperanza e Felícia *

     Foi quando começou a crescer que a inquieta Esperanza passou a fugir de casa cada vez com mais frequência, e indo para mais longe cada vez antes de voltar. Certa feita, Esperanza ficou a perambular por uma praia deserta até que parou para descansar do sol em um antigo casebre de madeira abandonado. Ficou admirando as ondas quebrando na costa quando, de repente, reparou em uma menina também sozinha. A menina parecia um pouco mais velha e brincava de plantar as mãos na areia para olhar o mar de cabeça para baixo. Esperanza estranhou que pudesse encontrar ali uma menina assim e ficou curiosa. Aproximando-se, perguntou:
     — Por que você está plantando bananeira desse jeito? — quis saber.
     — Quando fico assim — respondeu, de pronto, a menina, — posso fingir que estou voando pelos céus e carregando o mundo pelo universo na palma da mão. Você não gostaria de se sentir assim, voando pelos céus e levando o mundo para onde você quisesse?
     Esperanza riu da ideia da menina, mas considerou que era exatamente o que queria, poder ser livre e levar seu mundo para onde quisesse. Esperanza ficou ainda mais curiosa:
     — Quem é você?
     — Quem sou eu? Você não me conhece? — respondeu a menina, que sentou na areia, e separou as franjas loiras da testa, transparecendo seus olhos azulados.
     — Não. Nunca vi você por aqui. Nem sei seu nome — Esperanza sentou-se ao seu lado.
     — Eu me chamo Felícia. E você?
     — Esperanza.
     — E o que você faz andando por aqui, Esperanza?
     — Às vezes eu simplesmente saio de casa, procurando o amor. Acho que a vida sem amor não tem sabor. Então eu vago por aí, procurando algo que me faça ter amor à vida — respondeu.
     — Então você acha que a vida não tem sabor? — perguntou Felícia. — Eu também acho que a vida há de ter sabor — Felícia virou seu rosto para o mar, deixando que a brisa bagunçasse seus finos cabelos. — Às vezes eu acho que a vida é como um prato de comida. E ela vem com aqueles ingredientes amargos e agridoces que você não gosta. A maioria das pessoas separa o que não gosta, deixa no cantinho do prato, e come o que gosta. Mas há quem aprende a gostar de tudo e come o prato todo assim mesmo. E há quem deixa de comer o prato, com medo de provar aquele ingrediente que não gosta bem no meio da garfada. Reclamam que a comida não veio como eles gostariam. A comida esfria e a vida perde o gosto. Você não gosta do que está no seu prato? Por isso sai de casa? E quem prometeu a você que o sabor da vida está aqui fora? Amiga, o sabor tem que estar dentro de você, não importa aonde você vá.
     Esperanza sorriu, e entardecia, e lembrou-se de que não passava a noite fora de casa, por mais que tivesse ido longe, então se despediu de Felícia. E assim se passou aquele tempo. Esperanza, em suas andanças, caminhava até o velho casebre, aguardando que pudesse passar a tarde com Felícia, mas Felícia não aparecia. Um dia, nas vésperas de seu aniversário, Esperanza foi até o casebre, com muita vontade de dizer para Felícia que faria aniversário e que não queria mais fugir de casa. Esperanza ficou até o por do sol, sozinha, até que ouviu um barulho vindo do telhado de madeira, e quando olhou para o alto, viu Felícia sentada sobre a beirada do telhado, balançando as pernas.
     — Gosto de ver o por do sol aqui de cima. Às vezes é bom ver o mundo de outros ângulos — disse Felícia.
     Esperanza sorriu por ter reencontrado a amiga de passeio, e subiu até o telhado também.
     — Por que você continua vindo? Ainda está buscando o amor fora de casa? — perguntou Felícia.
     — Amanhã é meu aniversário. Isso quer dizer que vou ficar mais velha. Achei que, já que você é um pouco mais velha do que eu, você pudesse me dar de aniversário alguma lição de vida para eu levar em minhas andanças.
     — Que bom que você quer aprender, porque a vida está sempre nos ensinando lições. Então o melhor que você pode ser é ser uma boa aluna. Agora você está crescendo e precisa saber disso. Ninguém pode te prometer amor no mundo, porque o amor não está no mundo, está em você. Mas nem sempre a vida vai ensinar isso a você como se fosse uma amiga de passeio.      Às vezes a vida vai aparecer para você como se ela fosse uma vadia, que não está nem aí para o que você aprendeu ou não.
Esperanza aguardava palavras gentis de Felícia, e ter ouvido que a vida parece com uma vadia não era exatamente o presente que ela pensava em receber.
     — Às vezes a vida parecerá uma vadia, que ora lhe beija, ora lhe dá um tapa na cara — repetiu Felícia. — Mas precisamos de um tapa na cara às vezes. E se você entender que a vida de cada um de nós é só uma breve passagem por este mundo, então talvez a vida seja mesmo uma vadia que nos usa, e que depois nos descarta para sempre. Você pode encarar isso como um beijo ou como um tapa na cara. Mas o fato é que a vida irá nos usar enquanto pode, e depois irá nos abandonar sem aviso prévio. Então o que nos cabe nessa relação conflituosa é aproveitar o máximo de tempo em que estamos juntos, nós e a vida. É assim que as coisas são, então é melhor aprender logo como as coisas são porque o tempo passa rápido, garota. É melhor retribuir o beijo da vida com um beijo, e retribuir os tapas da vida se curando da ressaca. A vida é uma vadia, mas não vai bater em você à toa, e provavelmente você o fez por merecer, deveria ter sabido beijá-la. A vida vai lhe ensinar e depois exigir que você saiba beijá-la. A vida também vai ensinar e depois exigir que você a perdoe e se perdoe. Mas a grande lição é que a vida vai lhe ensinar, por mais irônico que pareça, o quanto que é importante ser grata pelo pouco tempo que você tem com ela. Talvez se agíssemos assim, aprendendo a beijar, perdoar, e agradecer, a vida nos deixe de ser uma vadia. Talvez seja essa a última lição. Então, pare de fugir do seu lugar e comece a aprender a encontrar o sabor no seu prato, e a apender a amar a vida antes que ela nos deixe.
     O sol se pôs, e Esperanza sentiu vontade de ir para casa, mas era uma vontade diferente. Acenou um tchau para Felícia e então percebeu que seu presente havia sido Felícia.
     — Quem é você? — perguntou novamente Esperanza.
     — Você não sabe quem eu sou?
     Esperanza sorriu e confirmou positivamente balançando a cabeça. Esperanza sorria. Felícia sorriu de volta e deitou-se sobre o telhado para admirar as estrelas.
     O crepúsculo guiou Esperanza de volta para casa. No dia seguinte, e no dia seguinte, e nos dias que se seguiram, o antigo casebre de madeira permaneceu sem receber visitas, porque Esperanza nunca mais voltou até lá. E quem poderia dizer onde Esperanza está agora? Alguns dizem que fugiu para mais longe, mas outros dizem que, depois que soube quem era Felícia, não precisou mais sair de casa para sentir amor à vida.

Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
 
Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 22/11/2016
Reeditado em 14/09/2021
Código do texto: T5831695
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