FELIZ ANIVERSÁRIO, VOVÓ!

Meia-noite, o relógio anunciava mais um dia de assistência à D. Anita, mulher tão forte que para o seu próprio desprazer, não conseguia morrer, por mais que desejasse. Zilda, sentada ao lado do quarto em que estava a paciente, com olhos cansados e sem nenhuma expressão – toda ela era um vácuo; sem emoções, como que a aguardar um fato prestes a se consumar, estava quieta, resignada, esperando o homem de branco dar o ultimato.

Com passos lentos, o médico baixo e “bem nutrido” se aproximava:

“Sabe, sua mãe é uma mulher muito forte! Eu sinceramente achava que ela não iria resistir, os infartos costumam matar pessoas nessa faixa etária muito rapidamente. Pelo visto ela não vai abrir mão de seus noventa anos, não é mesmo?”

Zilda tentou esboçar um sorriso – sem sucesso:

“E, então doutor, já posso levá-la para casa?”

“Claro que sim! Sua mãe está ótima, pronta pra outra!”

“Ah, não! Outra não, pelo amor de Deus!”

O doutor soltou uma gargalhada que ecoou por toda a clínica... “Acredito que a sua maior preocupação agora deve ser convencê-la de que ela não irá morrer.”

A velha Anita estava resolvida a fazer companhia a seu falecido marido; nada, absolutamente nada do que Zilda dissesse fazia-a desviar-se de seu propósito.

“Mamãe, a senhora não vai morrer!”

“Saia daqui sua comunista! Você e os seus irmãos são a minha vergonha.”

Ao dizer isso, parecia que estava embebida em fúria e desgosto, uma tristeza que a tomava de todo, que lhe dava ímpetos de raiva, de loucura – vontade de morrer. Desde o seu último aniversário Anita continuou sendo o que a partir daquele encontro com os filhos, noras e netos, intentou ser: uma velha fria, forte e imponente, que teve quatro filhos dos quais apenas um, em sua opinião, se tornou homem de verdade.

“Ah... O meu Jonga, este sim... Mas como tudo que presta na vida, não durou muito. Quero estar perto dele e do meu marido, me deixe ser feliz ao menos na morte!” Recostava a cabeça em seu leito.

Uma das maiores habilidades da velha era, sem dúvida, a facilidade que tinha para intimidar os filhos. Depois do que ela disse Zilda não viu outro remédio que não fosse retirar-se por um instante.

Enquanto saía do quarto pensava... “Já deve estar caduca, tantos anos na bagagem...” Passado alguns minutos, ela já convocava sua fiel criada para a dura tarefa de ajudá-la com a velha teimosa:

“Dorothy venha comigo, vamos levar a mamãe para a casa!”

“Dona Anita já está boa?”

“Sim, mas insiste em ficar aqui. Deve ser coisa da idade! Temos que convencê-la a tirar essa idéia maluca da cabeça, afinal de contas o aniversário de seu nonagésimo ano é depois de amanhã!”

Elas entraram no quarto de D. Anita, a imponente senhora tomou ares ainda mais inquisidores ao deparar-se com a criada da casa. “Dorothy, o que faz aqui? Deveria estar cuidando de suas ocupações... Ah! Em meu tempo as empregadas jamais deixavam o seu “que fazer” para ficar de acompanhante de senhoritas solteironas!”

“Mamãe!!!, porque está dizendo estas coisas, a senhora nunca falou desse jeito! Dorothy já está conosco há muitos anos e sempre cumpriu muito bem suas obrigações...” foi interrompida por uma voz pouco audível e sem firmeza: “Não se preocupe senhorita... a D. Anita não falou por mal...”

Anita parecia indiferente diante da repreensão da filha e, ao observar a subserviência de Dorothy, sentiu-se vitoriosa como um tirano que, observando a obediência de seus súditos jacta-se dizendo: “É assim que deve ser”.

Embora a resistência e a inflexibilidade daquela senhora tenham sido bastante difíceis de suportar, as duas foram pacientes e, finalmente persuadiram-na a voltar para o “lar doce lar”. Afinal precisava ver ainda, ao menos pela última vez, “aquela corja de cornos e vagabundas!”

Chegaram, então, à casa. O sol já estava reluzente, indicando que a manhã seria de muito calor em Copacabana, eram nove horas. Aos poucos Zilda foi acomodando os cosméticos, as bolsas, as roupas, os remédios, enfim, tudo o que era da velha. Dorothy ajudava-a colocando cada coisa em seu devido lugar, enquanto Anita sentava-se na poltrona – quieta, firme, como se fosse invulnerável a todos os ataques, imune a todas as doenças.

Seus olhos revelavam, no entanto, uma ansiedade seca, como a dos leões ao esperar a presa para dar o bote, sim, ela era exatamente isto, uma velha leoa faminta de atenção e de afeto. O seu aniversário aproxima-se “é amanhã” e como haviam prometido, seus filhos estariam ali de novo com sua prole fraca e suas esposas fúteis. Todos, todos mais uma vez! “Será que eu aguento?” Se dizia isso não era pela emoção de revê-los, mas sim pela frustração de ter que observá-los fazendo idiotices e atuando como exímios profissionais da comédia grega.

O dia seguinte chegou – tudo pronto para o espetáculo! A mesma mesa que há um ano deixava exposta as guloseimas da festa agora, novamente, estava colorida e exalando o cheiro de doces e salgados – era a “cortina” que se abria diante da presença dos atores em cena.

Zilda, a diretora geral da trama, estava como sempre apreensiva, trabalhando para que a “apresentação” fosse perfeita, olhava pela janela – “ as personagens” ainda não haviam chegado. Era uma tarde linda, brilhante, com a alegria que atrai o público para assistir a um evento muito importante.

Meia hora depois, eles chegaram, todos estavam ali mais uma vez... Infelizmente o público que os assistia não era muito grande – na platéia só a velha Anita os observava, vestida em suas boas roupas, usando seu bom perfume. Tudo pronto – era o começo de um drama inesquecível.

As crianças, “os figurantes”, que estavam ali simplesmente para acrescentar um pouco mais de gente ao espetáculo, não tinham muita vontade de atuar, queriam apenas fazer de conta que eram crianças. As personagens principais: os filhos e as noras de Anita já estavam em cena, preparados para dar um show.

“A grande vilã” _ a nora de Olaria, fez um grande esforço para sair do papel de coadjuvante e mostrou todo o seu potencial artístico usando seu figurino exclusivo de “perua psicodélica”. Com isso, realmente, foi impossível não dar a ela o papel principal no quesito nora extravagante e fútil.

Os filhos de Anita, sem dúvida, foram os principais da trama. Encenaram como ninguém o papel de filhos nostálgicos que não medem fronteiras para ver a mãe todo ano no dia de seu aniversário.

Quando a noite dava o ar de sua graça, as personagens aprontaram-se para o desfecho triunfal:

“Bom, parece que precisamos ir... é uma pena...” disse José, o filho que procurava se comportar como sucessor de Jonga. Jamais seria como ele, a espontaneidade de seu falecido irmão o limitava – o desprestigiava como “ator”.

Todos a beijaram, as despedidas forçadas e atropeladas repetiram-se. Desta vez, porém, Anita resolveu fazer parte do elenco: atacada por uma terrível falta de ar, pendurou suas garras de leoa feroz em seu filho Manuel que, atônito, não sabia o que fazer; não sabia fingir o seu pavor, estava desesperado assim como os outros. Ela conseguiu o que queria, estragou o espetáculo, por que tinha que morrer justo agora? Logo agora, que tudo já estava encaminhado para um desfecho perfeito!

Todos a olhavam, ela roubara a cena... Com uma única participação Anita ganhou a estatueta de melhor atriz... Pelos olhos esbugalhados, a boca em desalento ao passo em que expunha uma ira há muito reprimida, ela foi premiada. Era o fim... Um final inesperado, que surpresa! Por essa a diretora geral não esperava. “Como de repente ela saiu de mera espectadora para protagonista de um dos maiores dramas da vida real?” Espanto...

A morte é um espanto...

Sara Matos
Enviado por Sara Matos em 23/11/2016
Reeditado em 16/09/2022
Código do texto: T5832613
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.