Sopa de letrinhas (outubro de 2016)

Deu um tiro na altura do coração. A bala entrou no peito de Sírio e o atravessou. “Agora não há mais como voltar ao antes. ” Pensou por um instante e deitou-se no chão da sala de estar. Muito sangue saía do ferimento e, logo, o tapete da sala estava úmido e vermelho. Apesar do disparo ruidoso, o silêncio dominava no apartamento.

Sírio fez um esforço se arrastando sobre o tapete para chegar mais perto do televisor. Não dá para saber o que lhe passava pela cabeça para procurar pelo televisor como se fosse seu último desejo. Mas arrastou-se até a mesa de centro e fez cair no chão o controle remoto. Depois tomou-o à mão e ligou o aparelho.

Algumas dores são tão violentas que é como se não doessem. Isso é o que se pode deduzir daquele momento sério, momento cruel. Sírio pressionava a mão esquerda do peito para estancar a sangria, enquanto curvava a cabeça para poder visualizar a tela do televisor.

Passava um festival de desenhos animados, o que o fez lembrar-se dos dois filhos do vizinho, que àquela hora estariam sintonizados no canal, no cômodo ao lado. Havia dois dias, em um começo de tarde como aquele, brincou com os meninos no playground do prédio. Naquele dia já pensava em fazer tudo “aquilo”.

Empurrava um dos meninos no balanço quando imaginou esganar a si mesmo com alguma corrente, ou alguma corda. Pensou na eficiência das cordas e das correntes para alguém que deseja cometer “aquilo”, e não desconsiderou a possibilidade de fazer uma corda com lençóis, mas achou que isso poderia não dar certo. Porque cordas rompem-se.

Aquela tarde estava bonita e as crianças do playground estavam animadas. A cuidadora dos meninos do vizinho sorria também entusiasmada. O que passava pela cabeça de Sírio, algo tão importante, ninguém jamais saberia. Não contou para ninguém, não pensou que pudesse compartilhar sua ideia com outra pessoa, e guardou tudo para si.

Lembrou-se depois, enquanto estava estirado no chão da sala, que não havia checado a caixa de correspondência. Alguém que o encontrasse ali, morto, procuraria encontrar respostas nas cartas que Sírio recebia. A polícia e uma ou outra prima (não possuía parentes próximos), tentariam descobrir a razão de tudo aquilo nas cartas.

Mas Sírio não sabia, ele mesmo, a razão de tudo aquilo. Somente compreendia a gravidade e a impossibilidade de voltar atrás. Ninguém o houvera magoado, tampouco sofria de amores não correspondidos por alguém. E também passara dos cinquenta anos de idade, anos em que toda vã filosofia já não o pertencia mais.

Qual o porquê de tudo aquilo? Nem mesmo Sírio o sabia. Compreendia que não poderia voltar no tempo, retornar um minuto para trás do tiro, talvez forçar Deus a engasgar o cano de disparo da arma. Compreendia que era tarde demais para ilusões e lá no fundo infinito sentiu pena de si mesmo.

Seu desamparo era humilhante. As personagens de um desenho animado eram suas testemunhas naquele momento tão significativo. Aí se perguntou como tudo poderia ser diferente se tivesse feito escolhas diferentes que terminassem por conduzi-lo a um final diverso daquele em que se encontrava.

Começou a sentir uma dormência nos pés, que logo chegou às pernas. Trocou o televisor o canal, encontrando um programa de culinária. Alguém todo de branco ensinava como abrir um pato ao meio, utilizando-se apenas de habilidade e uma faca de açougueiro gigantesca. Era uma cozinheira.

A nudez despudorada do pato, estendido nas mãos da cozinheira, fez com que Sírio risse de sua condição. A cozinheira do televisor nada sabia da condição de alguém que não pode voltar atrás, de quem a morte começa a reclamar aos poucos sua presa, começando pelos membros inferiores até que a cabeça viesse a dormir como as pernas.

O pato depenado era dividido em dois exatamente a partir do peito. Muito habilidosamente, a cozinheira cortava o pato ao meio ao mesmo tempo em que tagarelava sobre aquilo que fazia, dando ares assim como se fizesse algo muito difícil, mas que se tornaria fácil uma vez que o telespectador prestasse atenção no que fazia.

Sírio acho de mal gosto assistir a cozinheira destrinchar o pato e mudou mais uma vez o canal. Um rosto conhecido encerrava o noticiário. Sua diversão das tardes de semana era aquele noticiário; geralmente desligava o televisor antes do programa de variedades que seguia e que Sírio detestava. Não fez diferente neste dia: desligou o televisor.

A dormência e o formigamento teimavam em demorar a chegar ao corpo todo. Permitiu que o silêncio tomasse conta novamente do ambiente. Tornou a lembrar-se da tarde no playground e dos meninos que o chamavam de tio. Pensou no sorriso pobre, de dentes pôdres, da tomadora de conta dos dois pequenos. E suspirou feliz em face da morte.

Agarrou-se ao primeiro pensamento que lhe ocorreu: “não há mais como voltar ao antes.” Não havia mais como voltar ao momento anterior àquele em que puxou o gatilho. Daquele momento adiante era observar os trinta minutos do caminhar da morte. Foi quando sua visão começou a obnubilar-se.

Teve a curiosidade de se questionar se depois da vida haveria apenas silêncio. Não era religioso, mas a curiosidade o fazia questionar se alguém do além se aproximaria em espírito, se viria algum guia, um anjo ou pessoa de Deus. Alguém do outro lado que pudesse alcança-lo naquele momento em que a vida terminava sobre aquele tapete.

Teve a impressão de que ouvia o ruído do desenho animado que vinha do cômodo ao lado, mas julgou ser ilusão sensorial. Depois lhe veio uma secura insuportável na boca e sentiu que a visão lhe abandonava aos poucos. Teve subitamente a curiosidade de saber das cartas, mas era tarde demais. Pensou ouvir as sirenes de uma ambulância ao fundo.