Uma ùlima Vez

Seus longos e belos cabelos eram usados por ela para proteger seus olhos da maldade e impurezas do mundo ao seu redor.Como se sua existência fosse um caso à parte.Ela não precisava das outras pessoas para seguir o seu caminho.Ela era única.Sua pureza combinava perfeitamente com a sua pele branca.A sujeira do mundo não podia contaminá-la.

Em certos momentos,eu conseguia ver os mais que evidentes semblantes no seu rosto.Conseguia ler o que eles cantavam.Tristeza.Solidão.Angústia.Incompreensão.Mesmo rodeadas de pessoas cujos olhos a admiravam feito uma divinidade celestial,sentia como se todos aqueles seres ao seu redor fossem tão vazios quanto o vento e suas palavras temperadas com bons olhares fossem tão fracas quanto folhas queimando no verão.Deve ser sufocante viver num mundinho tão artificial,sem a menor demonstração de calor ou empatia humana.

Eu queria ajudá-la.Eu realmente queria.Porém achava que aquilo estava muito além da minha jurisdição.O que era uma pena,pois creio ser o único que a observava com um mínimo de compaixão.

Os dias passaram.Cada um tão parecido quanto o anterior.Parecia que alguma divinidade estivesse moldando os meus dias com o intuito de me fazer achar estar vivendo o mesmo dia várias vezes seguidas.E nesses dias monótonos quanto cinza,eu via a mesma coisa.Pessoas tão diferentes quanto os segundos que envelhecem os meus cabelos.E a única capaz de mudar o curso desse rio chamado vida possui um rosto igual ao das outras pessoas,como se fosse uma estranha tentando se passar por um dos similares.

Caminho pelas ruas rodeadas de altos prédios tão brancos quanto a superficialidade de seus donos.Creio que eles não dão a mínima para minha existência,meus pensamentos,minhas divagações...Minha presença,pra falar a verdade.O único ser nutrido de tempo e paciência suficientes para me acolher e ouvir as palavras dentro da minha mente é a praia.O doce odor da brisa salgada do mar é um singelo convite para me sentar sobre a confortável areia e deixar as palavras dentro do meu peito se soltarem.

Isso até ela aparecer.

A mesma alma feminina solitária por quem criei uma preocupação um pouco incomum.Vi ela de longe,mas não a reconheci de imediato.Vi ela se aproximando e,mesmo assim,não a reconheci.Ela parecia bem diferente.Havia uma maquiagem bem produzida sobre o seu rosto.Seu cabelo,antes longo,chegando até a cintura,estava cortado até o ombro.Vestia um vestido azul-escuro bem forte e chamativo.Mas a maior diferença estava no seu rosto.Não era a maquiagem.Era a sua boca.Estava esboçando um sorriso.Algo nunca antes visto por mim em todas as vezes nas quais eu a vi.

Ela parecia tão alegre.Tão feliz.Tão cheia de vida.

Ela me cumprimentou com um abraço e um simpático beijo na bochecha.Me chamou pelo nome,como se fossemos amigos íntimos.Logo em seguida,olhei para ela com certa estranheza.Pelo visual dela e pela familiaridade repentina comigo.Ela me questionou quanto a isso.Me expliquei.Ela falou que o cabelo foi cortado para uma ocasião especial.Ela ainda tinha mais coisas a falar.

Ela me chamou para ir jantar com ela.Jantar em um restaurante de qualidade extremamente elevado.Me julgava inapropriado para aquele lugar até quando ouvia os garçons se dirigindo à mim.Nós achamos uma mesa perto de uma janela.Fiz uma gentileza e puxei a cadeira para ela.Nós comemos bem.Não demorou para ela começar a falar o porquê de tudo aquilo.

Ela estava extremamente farta de sua vida.Farta de uma vida para chamar ‘’dela’’.Eu questionei.Ela tinha uma família.Dinheiro.Amigos.Popularidade.Ela rebateu.Não era por isso.

Estava farta de ser rodeada por pessoas superficiais e egoístas.Só sabiam cultivar a sua imagem,e não aquilo por baixo dela.Não se preocupavam com ela,muito menos com o que se passava com ela.Apenas a usavam como uma espectadora para seus dias cheios de futilidades.Não aguentava mais ver tudo aquilo sem esboçar uma clara expressão de nojo e repulsão.

Confesso:Fiquei muito mal por ela.Pensaria da mesma forma.

Mas...

Por que ela recorreu a mim?

Ela parou por um momento.Mudou o tom.Olhou direto para os meus olhos e disse:’’Porque sinto que você é o único ao meu alcance que não só não age que nem eles,como também mantém vivo a minha fé de que existem pessoas boas.’’

Aquilo me acertou na barriga feito uma bola de canhão embebida em querosene flamejante.Apesar do choque inicial,aquilo queimava o meu corpo feito fogo.Não tinha capacidade de proferir as minhas próximas palavras,muito menos escolhê-las.

Mesmo sem os meus comentários,ela continuou a falar.Pretendia fugir de casa.Ir para outro lugar.Se perder no mundo e nunca mais voltar.Se levar pela correnteza.Ser outra pessoa.

Isso explicava o cabelo cortado até o ombro.Ela parecia bem diferente da alma feminina cujo rosto denunciava a própria solidão.

O dinheiro não era um problema.Havia houbado um dos vários cartões de crédito do seu pai.Pretendia fazer um bom uso dele.

Mesmo que eu não tenha falado nada durante o seu plano demasiadamente mirabolante,ela viu pela minha expressão o quanto eu havia entendido.Achava que eu concordaria com aquilo.E concordava.

Termianos o nosso jantar.Nos dirigimos para a entrada.Ela se despediu de mim com um longo e sentimental beijo na bochecha.Ela disse um adeus com um certo embargo na voz.Nos viramos e seguimos os nossos próprios caminhos nesses trilhos de trem com o nome de vida.

Sua presença desapareceu como um sopro jogado ao mar de ventos.Suas palavras ecoaram nos túneis da minha mente.

Nunca pensei que seria a esperança de alguém.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 27/11/2016
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