AVENTURAS LITERÁRIAS - EP 19 - A CRONISTA QUE OPTOU POR CONTAR

Cleide crescera num meio intelectual. Pais doutorados, titulares de cátedras, tios e avós, igualmente, estudados e bem relacionados com o universo acadêmico. Por esse motivo, foi orientada, desde cedo, a racionalizar suas posturas e iniciativas, a não enveredar por caminhos místicos, fora do conceito lógico e racional das fundamentações consolidadas, a não crer em um Deus e se ater ao aqui e agora, onde e quando tudo acontece e deve ser observado.

Durante a adolescência e os primeiros anos da vida adulta perseverou no caminho ideológico traçado pela família, optando por defender uma linha de atuação política tendente à esquerda, sendo muito crítica para com quem considerava opositor, e especializando-se em atuar, preferencialmente, através da literatura, e mais especificamente, por crônicas.

Antes de completar trinta anos já fazia parte de um grupo de cronistas notórios, que não davam trégua ao pessoal de direita, aos empresários, às alegadas elites e outros. Muitas de suas crônicas costumavam ser citadas por simpatizantes, em variados locais e situações, como exemplo claro de que a mídia aprovava certas iniciativas em apoio às causas que defendiam.

Certa noite, ao retornar de um evento, ela foi assaltada, agredida e teve seu carro roubado. Foi socorrida por grande grupo de religiosos e levada a hospital próximo, onde lhe negaram atendimento, por falta de documentos. O fato de terem surrupiado sua bolsa não serviu de argumento para os funcionários, que lhe recitaram várias normas burocráticas. Seus acompanhantes (os tais religiosos), levaram-na a um médico particular, companheiro de fé, que a atendeu em sua própria clínicia, com muita atenção, e fez questão de nada cobrar.

A polícia preencheu um boletim de ocorrência, mas disse nada poder fazer, enquanto um daqueles religiosos lhe telefonou, dizendo saber quem eram os assaltantes e se colocando à disposição para acompanhá-la à casa de um deles. No fim, cinco homens a levaram por ruas estreitas de uma favela e flagraram os criminosos ainda dentro de um barraco. Não lhes deram tempo de reagir e conseguiram reaver tudo que tinham tomado da menina. E o mais interessante foi ela ter reconhecido os meliantes como militantes de seu partido político.

Resolveu tirar uns dias de folga e foi descansar em sítio do interior, de propriedade da família de uma amiga. Lugar simples, gente humilde, nenhum barulho urbano e muito ruído dos bichos, do vento, da natureza. Andando pela redondeza, apanhando frutas no pé e observando o cenário rústico, deparou com um senhor bem idoso, sentado na soleira de sua taperinha, que a olhava insistentemente, enquanto pitava seu cachimbinho de bambu. Achegou-se a ele, que permanecia sorrindo, e quis saber de seu interesse aparente. O homem, com aquele jeitinho característico do matuto simplório, e com muita calma, descreveu, em detalhes, toda a vida pregressa dela, como se a conhecesse intimamente. Cleide não acreditava no que ouvia.

A certa altura da narrativa, o idoso passou a lhe dizer que o mundo tem vida, inteligência própria, e deixa as pessoas pensarem e agirem como querem, até um limite determinado. Daí em diante assume as rédeas, destrói o que não presta e renova a vida, de alguma maneira.

Ela quis saber mais, mas ele se calou, despediu-se, entrou e lhe fechou a porta na cara.

Ao retornar às suas atividades, a moça já não tinha a mesma disposição para seguir as costumeiras teorias conspiratórias, intrigas do poder, desavenças políticas, corrupção, descaso e desrespeito para com cidadãos. Não tinha gana, sequer, de elaborar uma crônica.

Recordava as palavras do velhinho, quando teve o impulso de escrever um conto, onde descreveria as agruras de um povo sofrido, submetido a uma corte corrupta e gananciosa. Foi cuidadosa em desenvolver a trama sem tingi-la de conotações ideológicas, além de abrandar a mensagem, com ponderações filosóficas de abrangência universal. Evitou todo tipo de crítica, mas recheou a estória de reflexões várias, e sentiu-se bem ao final do trabalho. Foi o primeiro de muitos contos congêneres, que a fizeram abandonar as crônicas e a postura agressiva.

Foi massacrada pela crítica (engajada), rejeitada pelos cronistas, ignorada pela família e convidada a sair do partido. Perdeu o espaço remunerado que tinha na mídia e, pela primeira vez, viu-se em apuros financeiros, até que foi convidada a escrever livros infantis. Logo de cara pensou em não aceitar a proposta, mas a editora mostrou-lhe que, com poucas adaptações, seu trabalho poderia agradar às crianças. Foi tiro e queda. Seus contos infantis fizeram tanto sucesso, que a fama e independência financeira lhe trouxeram de volta a segurança perdida.

A gritaria continuava, mas Cleide optara pela sóbria semeadura ética em mentes ainda impolutas, ao invés da ira e confronto. Arma eficiente é a compreensão plena e indistinta.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 03/12/2016
Código do texto: T5842697
Classificação de conteúdo: seguro