Não foi nada, não!

Não sei por que ela grita tanto. Se fosse por causa da miséria, tudo bem. Mas eu sou cheio de virtudes, assim, assim... Por exemplo, ontem, mesmo, eu pedi desculpas quando eu passei com a roda por cima do pé do Mathias. Agora se ele me desculpou, eu não sei, mas fiz minha parte. Até hoje eu não entendo por que as criaturas quase nunca dizem “não foi nada”, toda vez que alguém comete algum erro. Acho que andam tão ocupadas em pedir desculpas pros outros, que se alguém pisar nos seus dois pés, não vão nem ligar muito. Eu não, eu já sou diferente: se alguém me pisasse num pé, ficaria carrancudo, olhando bem nos olhos, até que me pedisse desculpas; daí, sim, eu voltaria a ficar com a cara mansa só para dizer “não foi nada”. Mas isso não pode acontecer, pois quando se perdem os dois pés, o máximo que ocorre é só pedir desculpas, se eu atropelasse alguém. Mas ela ainda continua gritando, não sei por que fica assim, com essa cara de bunda chorosa, olhando pra mim. Que culpa eu tenho se ela é miserável e feia? Já faz uma semana que eu encontrei essa mulher parada na minha frente, com essa criança suja pela mão. Ela só fica assim gritando e não me diz o seu nome ou quem é o pai do baixinho aí. Nojenta! Acho que tá afim se casar comigo pra fugir da sua situação, mas, se for isso mesmo, se fodeu, pois nem tenho mais onde cair morto, a não ser no chão lá da cozinha que é o mais limpinho, talvez por não usar o fogão já há muito tempo. Maldita! Por que não fecha a boca e aprende a escutar as minhas condições atuais? O menino não fala, não, só chora. Odeio choro de criança, por isso não tive filhos quando era casado. Não quis mesmo. Ora, ficar limpando o cagado e perder o sono! Deus que me livre! Sem bem que Roberta queria, me enchia o saco! E eu sempre brigava: "Sai, mulher, por aí e vê se traz dinheiro pra casa, mas não embarrigas, senão tiro o infante pelo teu rabo!". Ela choramingava, depois tirava uns cabelinhos da sobrancelha com uma pinça velha da minha mãe; botava aquela calça desbotada e rasgada na coxa e se ia pro batente. Eu ficava quieto e quando via minha pequeninha saindo, chamava meloso e dizia: “me desculpa!”. Ela choramingava mais um pouco e me respondia “não foi nada, não!”. Um dia, surgiu um tratante que veio me visitar, enquanto Roberta estava lambuzando o rabo com o cacete dos outros. Ele me disse que já fazia um tempinho que andava de olho na minha mulher e que sabia que ela era da coisa. Me falou, então, que tinha uma jogada, já que era uma guria bonita e jovem. Ouvi quieto, coçando a barba.

- Escuta aqui, queres ganhar um troco bom?

- Anh! – respondi, olhando para aquele carinha com um terninho escovado.

- Tua mulherzinha é gostosa e pode fazer um dinheiro, mas vou precisar levá-la. Me dá aí o número da tua conta que eu deposito. Ela vai ficar sob minha guarda por uns seis meses. Se der certo, dou férias pra ela e renovo o contrato.

- Anh! – disse, esperando mais alguma coisa.

- Mas é isso aí...

Nisso, entrou Roberta e, quando viu o tal sujeito, ficou branquinha. Parece que até conhecia o tramposo. Comentei com ela, ali, na frente do malandro, o que a gente tinha conversado, e já disse para que arrumasse as coisas pro tal passeio. Tampouco me interessei pra onde ela iria. Roberta baixou a cabeça e foi-se pro quarto. Depois de uns vinte minutos, voltou pronta e os dois saíram. Acho que a coisa deu certo, porque isso já faz uns dois anos, embora eu não tenha recebido nada e nem ela ganhado férias... Agora é a vez dessa aí, na minha frente todos os dias, já há uma semana, com essa boca sempre aberta e gritando, sempre com a mesma roupa e segurando a cria pela mão. Ah, que vão pro inferno! Já tentei falar com ela umas quantas vezes, mas não me escuta, a danada! Sempre na mesma pose desesperada, o capeta chorando e essa coisa de não saber da onde veio essa gente. Só consigo me livrar deles quando anoitece. Daí é hora de apagar as malditas luzes, e o tal do Mathias vem aqui me dizendo pra eu dormir. Fecho, então, a minha revista como se fecha uma porta. Olho ainda pro desgraçado, pedindo desculpas, mas ele nunca me diz: “não foi nada não, animal!”.

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 30/07/2007
Reeditado em 04/08/2007
Código do texto: T585599
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