FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO

Aos nove anos de idade

Eu, a Joice e o Dinho fomos tomar sol na praia. Dá pra acreditar que ele ficou jogando areia em mim todo o tempo? Contei tudinho pra dona Arlete, e, no dia seguinte, o tonto nem me olhava na cara, mas a orelha estava vermelhona, de tanto puxão que levou. Bem feito!

Aos onze anos de idade

Fui até a sorveteria com minhas amigas, e estávamos lá, belas e formosas, quando os garotos chegaram, fazendo um barulhão. Olhavam pra nossa mesa, cochichavam e riam, mas nem ligamos. O Dinho estava entre eles, numa pinta! Até que ele não é de se jogar fora.

Aos quinze anos de idade

Meus pais não sabem que eu e o Ronaldinho estamos ficando. Acho até melhor, porque em segredo é mais gostoso. Ele disse que não quer me ver com outro, mas quando falo em namoro, muda de assunto. Ele que vá pensando! Sem anel de compromisso, tchau e benção!

Aos vinte e cinco anos de idade

O Roni (até que enfim) resolveu pedir minha mão em casamento. Disse que quer casar no final do ano, para aproveitar a semana entre o natal e o ano novo. E minhas férias? E a praia? Minha mãe disse que devo priorizar nossa união, mas quando sugeri que nossa lua de mel fosse num cruzeiro pelo Caribe, ele respondeu que já temos o apartamento em Santos, que podemos alugar um barquinho e passear pela orla. Pela minha cara ele viu que errou feio.

Aos trinta e dois anos de idade

Será que o Ronaldo não se toca? Quando pedi ao médico que fechasse a fábrica após nosso quarto filho, o sonso reclamou que ainda dava tempo de ter mais uns dois. Abandonei meus estudos e trabalho para me transformar numa parideira desengonçada, da qual ele só lembra para reclamar da comida, do choro das crianças e da falta de papel higiênico.

Aos quarenta e seis anos de idade

Cuidar de quatro adolescentes é tarefa ingrata. Dormem de dia, saem à noite, só comem porcaria, acham que são os maiorais e os pais são umas bestas quadradas. Estou parecendo uma bruxa, sem tempo para me arrumar, mas eles não dão a mínima. O idiota do Ronaldo veio com a conversa de que ser mãe é padecer no paraíso. Mandei-o pros quintos dos infernos.

Aos cinqüenta e quatro anos de idade

Quando soube que teria de arcar com as despesas do casamento de Aninha, o “doutor” Ronaldo quase teve um treco. Sempre reclamava da falta de dinheiro, até que fui falar com o gerente do banco e descobri que o bandido tem grana alta aplicada. Quando me identifiquei como esposa, os funcionários estranharam. Tô sentindo cheiro de segredo bem cabeludo!

Aos sessenta e três anos de idade

Antes só que mal acompanhada. Quando me perguntam dele, nem cito o nome. Apenas digo: - O “ex”? Os filhos e mais um monte de desocupados acharam por bem criticar minha opção pelo divórcio, mas eu é que sei das patifarias que tive de agüentar. Agora sou dona de meus passos, e posso curtir uma paz que desconhecia. Só não posso esquecer os remédios.

Aos setenta e um anos de idade

Não é que meus filhos me apareceram em casa com um velhinho encarquilhado, que ao tentar sorrir quase perde a dentadura? Demorei a perceber que aquela caricatura de gente era o patife. Agora que está acabado, caindo pelas tabelas, quer se aconchegar comigo. Pode?

Aos oitenta anos de idade

No fim das contas aceitei o caco. Fiquei com pena. Cuidei dele por uns anos, até que se foi de vez. Agora sou viúva do ex, e quer saber? Sinto até saudade daquele entojo. Entenda!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 21/01/2017
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