Uma História Para A Vida

Pessoal, esse conto aqui eu escrevi para uma amiga que é universitária do curso de Letras. Espero que gostem! ;)

____________________________________________________________

– Bom dia a todos! Vamos nos sentar, pessoal. A aula vai demorar um pouco para começar.

Pouco a pouco vi a multidão jovem se recolocar em suas cadeiras. Era sempre o mesmo ritual. Barulhos de cadeira, cadernos ou notebooks sendo colocados a mesa. Alguns olhos fixos em mim, outros nem tanto. Sorri para mim mesma lembrando do meu tempo de universitária. Não era tão diferente do tempo atual.

– Ei, Lana. Porque vai demorar a aula? – A pergunta veio da Bianca, uma das minhas melhores alunas, porém, com problemas de ego. Ela o tem demais.

– Bom, o vídeo que eu ia passar para vocês está com outra professora.

– Ah, beleza!

– Enquanto isso eu quero contar uma história... É algo que passei quando estava na mesma situação que vocês. Penúltimo ano de faculdade e muita expectativa.

Sentei-me a mesa e olhei para toda a minha classe. Inicialmente, tive o interesse de apenas cinco alunos. Não era surpresa alguma, mas mesmo assim continuei. Tomei fôlego e comecei a história da minha vida.

Meu primeiro estágio começou no meu penúltimo ano de faculdade. Eu tinha 21 anos e muita vontade de ser professora. Afinal, saí de Porto Alegre e vim para o Rio Grande por causa disso. A minha chance enfim, veio. Um dia a minha professora de Espanhol me chamou na sala e disse que tinha um convite para me fazer e entenderia se eu não o aceitasse. Não entendi o porquê daquilo, afinal, o que eu mais queria era estagiar.

“– Lana... Eu vou ser bastante sincera contigo, guria. É uma classe muito difícil, num bairro periférico. Três professoras já foram parar no Psicólogo por causa deles.”

Lembro-me de ter sentido todos os músculos da minha perna ficarem moles. Tive vontade de chorar e por alguns minutos me arrependi de ter decidido fazer letras.

“– Eu não chamaria você para essa missão se não tivesse certeza de que você se sairá bem, Lana. Sei que parece horrível, mas confio na sua capacidade. Suas notas são excelentes, você é uma das melhores alunas que essa faculdade já teve.”

Acredite, pessoal. – Olhei para a turma, agora eu tinha a atenção de quase todos. – Foram lindas palavras da minha antiga professora, porém, na prática, é completamente diferente.

Vi dois alunos guardarem seus celulares para prestar atenção a minha história.

Cheguei em casa conversei com meus pais, ex-professores, conversei com meu namorado da época e todos me apoiaram dizendo que eu me sairia bem. E isso me trouxe um maior conforto. Uma maior paz para o meu ansioso coração universitário.

– Tudo conversa, não é Lana? – A pergunta agora veio de Matheus, um dos meus alunos do fundão. Balancei a cabeça, concordando.

– Olha, Matheus. Quando cheguei para o primeiro dia que vi onde eu realmente tinha me metido, guri.

Parecia um pandemônio. 35 alunos. Falantes, rebeldes, desbocados e prontos para fazer mais uma professora ir para o Psicólogo.

Meu primeiro dia de aula foi um terror, ninguém prestou atenção em mim ou quis se apresentar. Quando se fala de uma classe você sempre imagina que tem um ou dois que prestam atenção, mas não... Não mesmo! – Dei um meio sorriso. Agora era bom lembrar. Na época havia sido motivo de uma crise de choro. – O 2º A em peso tornou meu primeiro dia de aula um dia para esquecer. E foi assim pelo restante da semana. A segunda semana se resumiu a colarem chiclete no meu cabelo. – Ouvi som de risadas tentando serem abafadas. – É... vocês dão risada, mas imagine pra mim aos 21 anos e um cabelo na cintura ter sido reduzido a um corte no ombro. As gurias vão me entender. – E houve olhares benevolentes para mim. – Mas até que isso tudo foi fácil de lidar, pois aos poucos fui aprendendo as artimanhas de cada aluno, exceto de um. Sempre tem a ovelha negra da sala. E a primeira ovelha negra que eu tive eu me lembro dele como se fosse hoje. O nome era Daniel Serra, tinha 16 anos. Um garoto que apesar da pouca idade já era bem alto. Era mestiço. Pai japonês e mãe negra. Por isso tinha traços bonitos e uma pele achocolatada que encantava as adolescentes. A mãe dele era dona de casa, não havia terminado o ensino médio e o pai foi morto quando ele tinha 7 anos por dívida com o tráfico de drogas de Rio Grande. Não existia a menor estrutura naquela família. O meu primeiro contato de verdade com Daniel foi quando ele resolveu perturbar a minha aula.

Eu explicava um texto de Literatura que cairia na prova quando ouvi os primeiros burburinhos da turma do fundão. Pedi para pararem e todos, exceto Daniel me obedeceram. Foi necessário que eu o expulsasse para que ele passasse a entender que apesar da minha pouca idade eu era a professora e ele o meu aluno. Demorou um longo tempo para que Daniel não me visse como uma inimiga e sim como alguém que estava ali para ajudá-lo. Aliás, tempo demais. Mas a mudança enfim acontecera quando passei a deixa-lo um pouco de lado. Pouco a pouco ele veio se entrosando com as minhas aulas e suas notas foram melhorando. De desafio, Daniel virou um aprendizado. E digo o porquê.

Ele se tornou o meu MELHOR aluno. E toda a minha insistência resultou excelência não apenas na minha matéria, como também nas outras. Os demais professores vieram me agradecer pelo trabalho e inclusive elogiaram a melhora em Daniel. A direção ficou tão agradecida que aumentou o meu estagio e me deu mais duas turmas para lecionar. Eu me sentia tão feliz com o meu progresso e dos meus alunos que não tinha ideia do que aconteceria no meu último ano com a turma de Daniel. E muito menos com o próprio Daniel.

Era para ter sido mais um dia como todos os outros. Rotineiro. E poderia ter sido apenas MAIS um dia se eu não tivesse vivido uma perda tão triste de um jovem que tinha um mundo de possibilidades ao seu redor. Daniel foi assassinado na frente do colégio, vítima de bala perdida de uma briga de facções que ficavam nos arredores. Um único tiro no peito o levou para sempre. Faltava apenas dois meses para a turma dele terminar o último ano. Uma verdadeira tragédia.

A comoção foi total vinda dos meus alunos. E sem perceber, eu chorava com as lembranças.

- O que me ensinou essa história do Daniel é o seguinte. Convivam e vençam as adversidades na vida profissional. Atrás de cada aluno rebelde tem uma história, um passado, um aprendizado. Conheçam seus alunos e aprendam com eles como eu aprendi com Daniel. E aprendo com cada um de vocês. Confio na capacidade de cada um e sei que vou ouvir falar muito de vocês no futuro. É isso. Obrigada a todos. – Fiz uma reverência aos meus alunos e em resposta recebi muitos aplausos de pé dos meus 24 universitários.

A história de Daniel fazia parte da minha vida, assim como eu faço parte da vida desses alunos. Um tempo depois os liberei da aula e observei em silêncio um a um sair. A vida enquanto professor era isso também. Algum dia eu os verei sair da minha sala pela última vez, pois seguiriam seus caminhos e ensinariam outras pessoas. E a mim só cabia desejar que cada um deles, independentemente de suas escolhas fossem plenos e felizes em cada uma de suas escolhas e aprendessem com cada um de seus alunos. Sempre.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 28/01/2017
Reeditado em 20/04/2017
Código do texto: T5895218
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.