Belo Espécime = Conto=

-Depressa...mande uma...ambulânci...
Álvaro sorriu abertamente ao ouvir a voz estertorosa e suplicante do pai ao telefone, que se expressava com imensa dificuldade.
- Mandar uma ambulância...Essa foi boa. Boa mesmo. Vou dar é um bom tempo. Tempo suficiente para que vá até lá um carro fúnebre.
Desligou o telefone, subiu devagar até o andar de cima, despiu-se lentamente, examinou-se no espelho de corpo inteiro, sorriu como sempre para sua bela imagem, satisfeito com seu rosto de artista de Hollywood e corpo de atleta, e mergulhou devagar na imensa banheira cheia de água bem quente.
- Depois do banho farei uma visita ao velho. De preferência ao pobre corpo inanimado de meu muito querido pai.
Tocou uma campainha e logo uma das empregadas apareceu no banheiro.
- Tire a roupa e entre aqui para me esfregar.
A moça bonita atendeu-o de imediato e logo esfregava todo o corpo do patrão do jeito que ele gostava.
- Meu pai ligou. Acho que estava morrendo e queria uma ambulância.
- O senhor já providenciou?
- Estou pensando em fazer isso à noite. Quando já for bem tarde para ele.
Patrão e empregada riram muito.
- Pegue a toalha e me seque no capricho, minha cara.
- Pois não, patrãozinho.
Banhado, barbeado, bem vestido, Álvaro dirigiu-se à garagem da casa, escolheu um dos carros de luxo e logo saía, sem pressa alguma, em direção à casa de seu pai.
- Vamos lá, mas com calma. Nada do ritmo de quem vai tirar o pai da forca. De repente eu chego a tempo, encontro o velho vivo, tenho que chamar a ambulância e, pronto, terei que esperar pela boa notícia ainda muito tempo.
Havia escolhido o conversível e agora retribuía aos sorrisos femininos vindos de outros, sorria para aquelas que o olhavam com admiração, ria dos caras que o olhavam de cara fechada fingindo que não o achavam bonito, e de vez em quando tirava os óculos escuros para que todos pudessem apreciar seu belo rosto.
-Deus, quando me fez, estava com mania de grandeza. Só pode ser. Cada vez que me olho no espelho, só tenho que me convencer dessa verdade. Bonito, inteligente, esperto, charmoso, bom de papo, maravilhoso de cama, potência a mil, cheiroso e bem-cheiroso de nascença...É muita perfeição para um cara só....
E o meu velho, coitado? Feio feito a necessidade, ruim de papo, antipático, mão-de-vaca, e morrendo sozinho no apartamento vagabundo que mantém para economizar. Mas até que ele foi legal comigo. Quando dei aquele tremendo desfalque na empresa dele o velho acabou relevando. Acho que não queria sujar seu próprio nome entregando o filho que lhe deu o prejuízo. Deve ter sido isso. Mas foi graças a esse desfalque que pude viajar pelo mundo, pegar muitas mulheres, experimentar tudo que a vida tem de bom e, o melhor de tudo, conhecer Jacqueline, minha linda esposinha milionária. Minha maravilhosa e imensamente rica esposa que me dá tudo que imagino ter, e que só exige que eu envelheça bonito como sou. Deus que me livre e guarde de ficar feio por qualquer motivo, seja por doença ou acidente. Ela me dispensaria no ato, sem direito a nada, de acordo com nosso contrato nupcial. Se há coisa que ela não tem é sentimento. Seu único sentimento é tesão pela beleza. Pela beleza que eu, sem modéstia alguma, eu tenho de sobra. E o velho? Será que está vivo ainda? Se já tiver embarcado desta para uma pior, melhor pra mim. Já saqueio logo o que puder dos milhões dele e continuarei curtindo ainda mais e melhor a vida. Afinal de contas nossa família, graças ao bom Deus, ficou reduzida a mim e a ele depois daquele maldito acidente. Acidente que ele diz que não foi acidente só porque eu tinha tomado uns goles a mais e fui o único sobrevivente. Se eu tivesse morrido também, ele, além de satisfeito, teria considerado acidente. Eu acho que foi milagre. Até meus anjos me protegem mais do que aos outros seres humanos. Tenho lá culpa de ser gostoso? Bem, estamos chegando à casa do papai querido, do papai muito amado. Vamos ver o que a vida nós traz de bom neste momento.
Álvaro entrou e viu de imediato o pai caído no meio da modesta sala. Chutou o corpo devagar algumas vezes até constatar que estava morto. Chutou levemente o corpo por estar sem qualquer vontade de abaixar-se e verificar se o pai ainda respirava ou não.
- Bem, o teste final: um chutinho maneiro no saco. Se não se encolher, já esticou as canelas.
Em pé entre as pernas do pai, deu-lhe um belo chute na região dos órgãos sexuais.
- Belo teste esse. Tá mortão mesmo. Vamos ao cofre. Vejamos se minha cara empregada-espiã conseguiu mesmo a senha correta para abri-lo sem dificuldade alguma, ou se terei que chamar o Anderson, o especialista.
O cofre ficava logo atrás de uma das cortinas e para lá Álvaro dirigiu-se, feliz por antecipação, assobiando e pensando como faria para levar os muitos pacotes de dólares que o pai fazia questão de ter em casa. Depois cuidaria de sacar os outros investimentos e tomar posse das propriedades espalhadas pela cidade toda.
- Vamos lá, novo e lindo milionário, vamos ver o que o papai querido nos deixou de lembrança.
A senha estava absolutamente certa e Álvaro escancarou de vez a porta do cofre. Ao fazê-lo recebeu um jato forte na cara e saiu gritando desesperadamente pelo imóvel, batendo a cara nas paredes, tropeçando nos móveis, machucando-se cada vez mais a cada movimento que fazia, completamente cego e sentindo que sua cara estava sendo arranhada por alguma coisa que o fazia de maneira extremamente dolorida. Parecia-lhe que seu rosto pegava fogo e se consumia em uma dor dilacerante.
Cego, totalmente deformado, com o cérebro prejudicado pelo desespero, aos trinta anos de idade, Álvaro anda pelas ruas de mão estendida e implorando pela caridade alheia.
Jamais tomou conhecimento do bilhete que o pai lhe deixara, encontrado pela ex-empregada e por ela guardado depois de lê-lo e relê-lo. Até decorar o conteúdo: “Prezado Vagabundo, eu sabia que morreria muito de repente. Já havia sido avisado por meus médicos. E sabia também que a última pessoa a quem deveria pedir socorro seria a você, diabo em forma de ser humano. Depois de morto é claro que nada verei, mas posso apostar que em lugar de me socorrer, você correrá atrás de meu dinheiro no cofre, já calculando quanto conseguirá de herança. Se eu chegar a ser socorrido por médicos ou atendentes, meu corpo será movido e a armadilha no cofre desativada por um finíssimo fio de nylon. Se eu não for socorrido a tempo, quem abrir meu cofre -e será você, na certa, já que facilitei unicamente à sua espiã a senha do cofre- será cruelmente castigado ao receber o jato de ácido poderoso que ali instalei. Ficará cego e deformado de forma absolutamente irremediável. Em tempo: você não é nem nunca foi meu filho. Eu e sua mãe o adotamos totalmente contra a minha vontade, que não queria em casa uma criança excepcionalmente bela cujo olhar, desde cedo, nada de bom me dizia. Deixei tudo que era meu para a sua já imensamente rica esposa, e com a condição única de que não lhe desse um tostão sequer do que era meu. Até nosso próximo encontro. No Inferno.”
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 03/08/2007
Reeditado em 03/08/2007
Código do texto: T591247
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