O lamento da inocência

Uma pequena estrela despontou durante o pico mais alto da noite. Oscilava a luminosidade discreta, uma piscadela. A lua era um sorriso aberto, expansivo. Só que, num canto, uma flor suspirava por ainda não ser colhida; desejava ser entregue ao término de uma declamação amorosa. Mas ainda não havia sequer uma única pessoa na rua. Fazia frio e a inocência de suas pétalas tremia. Talvez se achasse feia demais para ser delicadamente arrancada da jardineira. Ficou assim, portanto, na expectativa de um olhar. Enquanto isso, admirava a estrela que piscava, a única naquele campo negro. De repente, escutou um risinho tímido sobre uns galhos de cinamomo. Ficou espantada. Olhava e olhava, mas a escuridão, reforçada pelas sombras das folhas, ocultava o que quer que fosse. Será que o som vinha realmente do meio das ramagens? Será que talvez fosse um casal por detrás das árvores ou, mesmo, vindo na sua direção? Porém flores não falam, sequer gritam para pedir atenção. Ainda mais ela, uma flor que se julgava feia, que nem mesmo sua beleza natural de flor poderia despertar interesse, quando muito, ser colhida ao acaso, apenas para alguém tirá-la de onde estava só por tirar.

E aquele risinho foi se acentuando, como se já roçasse a haste num calafrio agradável. Ela olhou com maior insistência através dos meandros escuros da copa e viu saltar uma cabecinha à meia-luz: um pássaro, desses pequenos, que nunca se sabe o nome, mas que vem sempre de longe. Era ele, portanto, o dono das tais risadinhas. A flor ficou levemente decepcionada, pois o que um pássaro poderia querer com uma flor? Não tinha sequer um companheiro ou companheira para lhe ofertar a beleza de suas pétalas, já tão úmidas de orvalho; e, além disso, bastaria o seu canto para enternecer o coração alheio. O que esperar agora? O frio ia ficando intenso, de modo que ninguém mais sairia de casa. Os namorados se amariam apenas ao sabor das lembranças. O passarinho gargalhou ao ver a flor murchar um pouco.

- Do que está rindo tanto? Não vês que hoje não serei colhida, não percebes que estou entediada?

- Eu percebi sim. - disse o animalzinho, soltando uma gaitada, a ponto de cambalear um pouco sobre o galho fino.

- E então? Ainda por cima vais debochando! - disse a flor injuriada.

O pássaro saiu um pouco para fora de seu esconderijo, e a claridade deixou mostrar um corpinho frágil e cinza.

- Não me leves a mal, minha amiga, mas já faz um bom tempo que ando de sobrevôo, a fim de encontrar um lugar onde possa descansar minhas asas. Dois camaradas que me acompanhavam numa jornada desde o ponto norte deste país foram abatidos. Sou o único sobrevivente de uma tragédia. Ainda não tive sequer um pouco de ânimo para ciscar alguma coisa. Sabe, o medo. E, já parado aqui por algum tempo, fiquei analisando um lugar definitivamente seguro para que eu pudesse pôr meus pés em solo firme. De repente, eis que te vi. Senti tua tristeza, mas não a compreendo. És uma flor e tens as pétalas jovens e vigorosas, além de um colorido vistoso.

Ele desceu do galho e pousou sobre a grama úmida em frente à jardineira. Depois se pôs a girar, abrindo as asas.

- Olha bem, flor! Eu sou cinza, totalmente cinza, nem mesmo um matiz. Dois amigos morreram pelas mãos dos homens, sinto fome, estou cansado depois de uma viagem de quase cinco mil quilômetros e, mesmo assim, tenho fôlego para gargalhar da tua ingenuidade.

A flor inclinou-se:

- Mas de que vale uma flor se não servir ao coração dos homens? Escutei tantas histórias lindas sobre flores ligando abraços, antes separados pela tempestade das paixões arruinadas. Nasci com esse fim, mas percebo que vou permanecer nesta jardineira até o próximo outono, quando minhas pétalas perderão suas cores e serei consumida por esta terra. Aqui foi meu nascedouro e será minha tumba. - A flor se inclinou, deixando cair gotas de orvalho.

- Ora, por que choras? - perguntou o pássaro espantado.

- Porque os homens não fazem mais versos, não proclamam o desejo estúpido da eternidade, hoje apenas se consomem. A paixão dos homens não cabe mais no instante das flores. Eles perderam o tempo do amor.

- Entendo. Mas vejo que o mundo dorme a esta hora. As janelas estão todas fechadas. Neste momento, os homens exercem sua fúria ao longo de seus pesadelos. Tu és linda como uma bailarina, eis o teu vestido de retalhos coloridos! Eu sou cantor, uso minha voz para despertar o dia dos homens. Façamos nós dois agora o nosso espetáculo. Eis o público que se abre diante de nós, sob o luar! Eis o nosso palco...

A flor se calou por um tempo, mas assentiu; Os dois se prepararam, então, no camarim do relento. Abriram-se cortinas invisíveis e o pássaro fez ainda um ensaio com notas que se alternavam em agudas e graves, talvez acertando a entonação para um perfeito som musical. A flor ia girando levemente a corola no próprio eixo da haste, procurando seguir o ritmo do canto. De repente o animalzinho ergueu-se de um pulo e sobrevoou a flor, imitando-a em seus movimentos giratórios, enquanto o som canoro ia preenchendo o pequeno espaço circunscrito em que estavam. Outras estrelas surgiram inesperadamente no céu, mais cintilantes do que a primeira: eram como se fossem aplausos de um público de anões. A lua parecia maior e jorros de luz caíam sobre os artistas. A flor girava com entusiasmo cada vez maior à medida que o canto se tornava mais febril; e o pássaro, para não perder a cadência dos movimentos, contornava a companheira num vôo cada vez mais célere.

Dessa forma, nesse ritmo, o show se estendeu até um raio cortar a madrugada, marcando o céu com rajadas incandescentes. O sol já ia assumindo seu posto. O público havia deixado o teatro e a orquestra de insetos silenciara. Uma mulher acordou com o dia que atravessava a janela e saiu de casa para regar algumas plantas. Percebeu, de passagem, uma flor caída, murcha sobre a jardineira e, ao pé desta, um pequeno pássaro também caído, durinho e cinza como uma pedra. Então a mulher pegou na pazinha que trazia consigo e recolheu as duas criaturinhas sem vida; atirou-as dentro de uma sacola de compras e atou as alças; olhou em volta, sem interesse, uma atmosfera anunciada por ruídos provenientes de uma oficina, enquanto espanava do rosto uns últimos pedaços de sono:

- Esses gatos! Quando será que vou me livrar deles?

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 03/08/2007
Reeditado em 30/10/2007
Código do texto: T591619
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