Anjo Negro

O garoto olhava para o espelho. Estava escuro. Da janela, uma pequena fresta de luz que atravessava as cortinas fechadas, denunciava que ainda era dia lá fora. No chão, papéis rasgados e fotos recortadas amontoavam-se nos pés do garoto, sentado na cama, olhando o espelho. E do espelho, o anjo retribuía o olhar.

O anjo não estava em seu quarto, não fisicamente, mas, de alguma forma, sua presença ali era, ou o que lhe parecia, real. Suas asas, negras como as de um corvo, eram tão grandes que sumiam nas bordas do grande espelho. Penas avulsas caiam a cada bater de suas asas. O rosto do garoto, vermelho e molhado de lágrimas, encarava o anjo, duvidando de sua lucidez.

– Lucas, por quê? – perguntou o anjo.

– Eu não sei – respondeu, cabisbaixo.

– Eu posso ajudá-lo.

– Ninguém pode me ajudar.

– Eu posso.

– Eu não pedi a sua ajuda! – respondeu Lucas, com agressividade.

– Pediu. Mas não posso forçá-lo, apenas estender a minha mão e esperar que aceite – o anjo estendeu a sua mão, sem atravessar o espelho.

Lucas observou o anjo e em seguida seus olhos pousaram sobre a foto que ele segurava. Uma garota de cabelos negros e de pele morena, com olhos castanho-escuros que sorriam, enquanto ela abraçava um garoto. “Nós podíamos ser felizes juntos, eu sei disso”, pensou.

– Não – respondeu ao anjo.

– Filho – o garoto levantou os olhos assustado, aquela era a voz do seu pai, mas era o anjo que falava. – Não é o fim do mundo, sabe? Você é um garoto bonito, inteligente e com bom coração. Eventualmente, você encontrará outras garotas, outros amores.

– Pare! Eu... Eu... Ela é especial.

– Somos amigos, você sabe disso – agora era a voz de Tomás, seu amigo de infância. – Você tem que entender, cara. Às vezes não dá certo. Você a amou, mas ela não correspondeu. Na minha opinião ela está perdendo o melhor cara do mundo! – aquilo arrancou-lhe um sorriso na época, mas agora era estranho demais.

– Não. Não sou bonito, muito menos inteligente! E mesmo se eu fosse, o que adiantaria a minha inteligência se ela não admira isso?

– Você deve mudar por alguém que não está disposto a mudar por você? – perguntou o anjo, desta vez com sua voz melodiosa.

Ele ficou sem saber o que dizer.

– Você é especial, Lucas. Deve saber disso. Seu futuro é grande, você deve...

“Morrer”, disse uma segunda voz. Lucas olhou para os lados, procurando a fonte da voz. Quando viu nas sombras de seu quarto um homem em pé, de terno preto com uma gravata vermelha. Era branco como papel. Seu rosto era uma máscara de carne. Não tinha olhos ou boca, nem mesmo um nariz. Em sua cabeça, cobrindo sua calvície, tinha um chapéu também vermelho.

A criatura se aproximou. Lucas tentou se afastar, mas estava fraco e com muito medo. A criatura se ajoelhou próximo a ele, apontou para o anjo no espelho e disse:

– Ele não irá ajudá-lo, garoto. Você certamente é um fracassado. Feio, esquisito, e vamos ser sinceros, a garota nunca aceitaria sair com você! Imagine namorar ou casar com você. Um tolo. Um idiota. É, sem dúvidas...

– Humano – o anjo o cortou. – Ele é bom. Suas intenções eram nobres, mesmo que a garota não estivesse atraída por ele, não quer dizer que outras não o olhassem como ele olhava para ela. O maior exemplo disso é a...

– Cale-se! – disse a criatura. – Ele não precisa saber. Afinal de contas, ele já está morto.

Os olhos de Lucas se arregalaram de medo. Estaria morto? Seria aquele quarto escuro o seu inferno? No espelho o anjo já não possuía mais penas, apenas ossos e pele em suas asas. O anjo sangrava pela boca e parecia estar sentindo muita dor, assim como Lucas.

– Lucas – o anjo tossiu. – Eu ainda posso ajudá-lo... Você ainda... – mais uma tosse. – Ainda pode descobrir o verdadeiro amor! Você – outra tosse. – Você deve saber quem está lá para você, por você! – ele pôs a sua mão no espelho. – O verdadeiro amor.

Lucas caiu no chão, tossindo sangue. A criatura o olhava de cima. “Você está morto”, dizia, mas ele não queria acreditar. Talvez tivesse uma chance de reverter o que fez. Talvez pudesse, enfim, descobrir o que era o amor e deixar o passado para trás.

Tocou no espelho.

Anos haviam se passado desde a falha tentativa de suicídio em seu quarto. Ele estava agora com trinta e seis anos. Era um médico famoso. Cardiologista. O melhor do país, diziam. Sentado em um banco de balanço, abraçado com uma linda mulher, ele observou o nascer do sol em sua casa de praia.

– Acorde amor. Vai perder de novo – disse para sua amada.

– Não importa – ela falou depois de uma sonora bocejada. – Contanto que sempre esteja aqui comigo. Todos os dias. Todas as noites. Será um nascer de sol – ela sorriu e deu-lhe um beijo nos lábios.

Eles se levantaram e foram para dentro da casa, mas não antes de Lucas dar uma última olhada no sol e sorrir. “Obrigado, meu anjo da guarda... Valeu a pena esperar”.

Mas aquele não era o mundo real.

Uma garota de cabelos loiros visitava constantemente Lucas. Seu nome era Amabel. Ele estava agora no hospital, em coma, e os médicos diziam que não tinham qualquer esperança de que ele um dia fosse despertar. Mas ela não acreditava neles.

Dia após dia, ela o visitou. Era a única, além dos pais dele. Ela o amava, mas nunca teve coragem de aproximar-se dele. Ele nunca a havia notado, porém não importava mais.

– Eu te amo, Lucas. Gostaria que pudesse estar acordado para ouvir isso. Eu irei esperar! Quando acordar, estarei ao seu lado e seremos felizes juntos, eu juro – ela chorava.

Dois meses depois ela parou de ir.

Dois anos depois ela conheceu Jonathas, e por um longo tempo namoraram até que um dia ele a pediu em casamento e ela aceitou.

Dois anos após o casamento tiveram o primeiro filho e no ano seguinte o segundo.

Lucas jamais acordou.

Anderson C Alves
Enviado por Anderson C Alves em 26/02/2017
Código do texto: T5924560
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.