PEACE AND LOVE

Era o dia sete de setembro de 1972, uma quinta feira meio esquisita (chove, não chove) e Luizinho, ou Rainbow (como gostava de ser chamado), convidara alguns amigos recentes para uma festinha doméstica. Não era um grupo de pessoas convencionais, mas aqueles a quem o povo chamava, à época, bichos grilos, porras-loucas, freekies ou hippies, apesar de este último epíteto não ser adequado à turma destrambelhada, que mal tinha noção do que ocorria à sua volta, gastando o tempo em papo furado e pequenas contravenções.

Rainbow (credo) já fora, anos antes, sócio de carteirinha do fã clube do Elvis, mas se dera mal com os demais ao confessar sua predileção pela música da jovem guarda. Após ser expulso, tornou-se freqüentador assíduo dos programas semanais da TV Record, lá na rua Augusta, porém, ao tentar chegar perto da Ternurinha, distribuindo cotoveladas para todo lado, foi posto para fora, aos safanões, e impedido de voltar, com direito a retrato na portaria.

Agora o sujeito se tornara adepto da contra-cultura, do amor livre, do “peace and love” , e mesmo que de tudo isso só entendesse que quem fosse aceito no grupo poderia transar com todas as gatinhas, sem nenhum problema, a coisa já estava de bom tamanho.

Luizinho estava na casa dos trinta e sete anos completos, mas ainda dependia de sua mãe para tudo. Até seus dentes ela escovava, após lhe dar a comida na boca.

Dona Noquinha, como todos a conheciam, era uma sessentona conservada, roliça e bem feita de curvas, quase sem rugas, sorriso farto e bonito de dentes naturais (perereca, nesta boca não entra, dizia) viúva há mais de quinze anos e namoradinhos ocasionais, que depois de conhecerem o filho, geralmente, não voltavam mais.

Naquela quinta feira, com o céu nublado e um ventinho esquisito, ele achou por bem botar toda a patota dentro da casinha espremida, onde vivia com sua mãe, e deixar rolar uma festa exótica, em que cada um se espichava num canto, fumando uma erva, dando alguns amassos em mais alguém e bebendo ou comendo tudo que havia na geladeira da senhorinha, que estava ausente, assistindo ao desfile do dia da independência.

Depois de algum tempo de bebedeira e fumacê, já tinha gente dormindo nas camas, vomitando e urinando no chão, transando em cima da mesa da cozinha e coisas tais. Todos, aliás, já estavam nus em pelo, exibindo o aspecto característico de quem não tem a menor preocupação com higiene, o que se confirmava pelo odor, quer dizer, budum predominante.

O problema maior começou quando Rainbow, já completamente sem noção, por conta de tudo que fumara, cheirara e bebera, recebeu, de bom grado, o carinho efusivo de dois de seus “amigos”, no tapete da sala, diante da porta da rua aberta e sob as vistas de diversos passantes, entre vizinhos e desconhecidos. Uma aglomeração logo se formou no portão.

Dona Noquinha já estava a meio quarteirão de casa, braço dado com um sargento, de quem se afeiçoara dias antes, e que a acompanhara ao desfile, quando percebeu a agitação em frente à sua casa. Apressou o passo, foi empurrando os curiosos, com a ajuda do parceiro, e quando deu com os três rapazes embolados no umbral da porta da frente, estancou pasma.

Achando que sua residência tinha sido invadida por vagabundos, passou a mão num galho seco da roseira do jardim, ainda cheio de espinhos, e partiu para cima dos mequetrefes.

Ao sentirem os espinhos na cacunda, os rapazes saíram voando da casa, atropelando todos os que estavam no caminho, inclusive o sargentão, cujos olhos pareciam que iam saltar das órbitas, de tão assustado que estava com o que ocorria. O único que ficou onde estava, mesmo porque nem conseguia ficar de pé ou entender muito bem o que se passava, era o próprio filho, a quem ela reconhecera somente naquele instante. Mais furiosa ainda, soltou um grito tão alto e selvagem, que todos “hippies”, mais que depressa, apanharam os farrapos que estavam mais à mão e escafederam, seguindo no mesmo rastro dos dois primeiros fugitivos.

A mulher andou pela casa, olhou a baderna toda, pegou a mangueira, ligou a água no máximo e esguichou na cara de Luizinho, que então despertou da modorra e percebeu o logro.

Sem entender direito a situação e sem poder explicar alguma coisa, diante da fúria materna e do jato d’água na cara, o gajo também correu nu, porta afora, gritando:

- Peace and Love, mãinha! Peace and Love!

- Vem aqui que te dou um pissilove de relho, seu desajustado.

Luizinho nunca mais apareceu, dona Noquinha acabou se conformando e aceitou que o sargentão ocupasse o lugar. Por via das dúvidas, o homem preferiu dar sumiço na mangueira.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 03/03/2017
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