"Dever de Casa" = Conto=

- Mãe, você precisava ver, mãe! Acertei todas as latinhas de novo, mãe! Sem errar nenhumazinha. Foi só pá,pá,pá, uma por uma, e olha que dessa vez consegui pendurar quarenta e cinco das pequenas, mãe!
- E o dever de casa? Já fez tudo?
- Ó mãe...você tem que tirar minha alegria...você sabe que nunca deixo de fazer as lições de casa, mãe. Eu sei que tenho que estudar muito pra entrar na Academia Militar. Quero fazer o concurso quando tiver idade e entrar lá logo de cara, na primeira tentativa. Vou entrar lá e ser o melhor atirador do mundo, você vai ver.
- Lá não tem tiro ao alvo com estilingue, filhinho.
- E acha que não sei disso, mãe? Já pensou aquela turma toda bem fardada atirando com bodoque? Ficaria ridículo demais. Mas eu vou ser o melhor atirador do mundo com tudo quanto é arma. Com fuzil, com revólver, com metralhadora, com tudo que é tipo de coisa que dá tiro.
- Olha lá o que você prometeu pra mim e pro seu pai....
- Não precisa repetir, mãe. Eu nunca que vou pegar nas armas do pai. Ele já conversou comigo e falou sobre acidentes com armas e eu só dou minha palavra uma vez na vida e cumpro. Já não te disse que serei um super-herói. E super-herói não mente, não deixa de fazer justiça, não deixa os fracos serem oprimidos pelos fortes.
- Então, meu super filhinho, vá se lavar para almoçar. Sua irmã já saiu do banho. Viu que ela agora está tomando banho sozinha? Nem me pede mais ajuda pra nada e se lava direitinho.
- Ela é quase tão inteligente quanto eu.
- Vai lá, menino modesto. Vai depressa que daqui a pouco o almoço estará na mesa.
O menino se foi e a mãe balançou a cabeça risonhamente.
- Super herói...Essas revistas que o pai traz da casa dos primos dele estão fazendo essa cabecinha ficar cheia de coisas. Mas até que esse danado desse magrelinho atira bem com o tal estilingue. Ôi, meu bem, nem te vi chegando...Que cara é essa, amor?
- O tal do alemão, aquele bandido daquele seu Arthur...
- O que tem ele? Arranjou encrenca com você?
- Pior que isso. Já deu a entender, claramente, que virá aqui fazer uma proposta pelas terras.
- Mas você já disse a ele que não quer vender. Eu te ouvi dizendo isso claramente a ele, e o velho valentão continua insistindo?
- Valentão não, meu bem. Covardão. Só é valente por ter ao lado dele, sempre, aqueles seis animais imensos que são os filhos dele. Aquela turma de bandidos sempre armada até os dentes.
- Tinha que ter alguma proteção pra nós. É duro ter que vender o que é nosso só porque o homem cismou de comprar.
- Ele sabe que nossas terras têm futuro, que são quase virgens de plantações e que logo mais estarão dando muito dinheiro. E mesmo assim o desgraçado ainda tem o desplante de oferecer pouco por elas.
- O que é que a gente pode fazer?
- Na verdade? Nada. Quem é que eu tenho ao meu lado? Você, duas crianças, alguns empregados raquíticos que nunca pegaram em armas, e mais ninguém.
- Em resumo: ele vai nos expulsar do que é nosso, e nós levaremos apenas um pouquinho de dinheiro nas mãos pra recomeçar a vida em outro lugar.
- É isso. Ou ele vem com seus filhos, os animais armados, liquida a família, corrompe algumas autoridades baratinhas, faz um rolo no cartório e fica sendo o dono de nossas terras quase de graça.
- Pensar que ainda pode acontecer isso em pleno século vinte...
O menino ouvia tudo sem que os pais o percebessem. Ouvia e pensava no velho Arthur e seus filhos. Lembrou-se, então,que estava treinando desde cedo para ser um super herói quando crescesse e já estava até pensando em seu nome de herói.
Um herói distribui justiça, faz justiça, evita injustiças custe o que custar. Defende os fracos e oprimidos. Castiga os bandidos e os mal intencionados. Protege a família e a sociedade. Principalmente sua própria família. E faz tudo em silêncio, sem contar nada a ninguém. Escondido em sua caverna equipadíssima com o que há de mais moderno no mundo, um super herói apenas planeja o que vai executar a seguir.
  Depois do almoço, assim que a mãe o liberasse depois de examinar se escovou bem os dentes, Vladimir, o Mirinho, correria para sua caverna no tronco da árvore morta e ali estudaria um jeito de defender sua família.

   Almoçou bem, mastigou devagar os legumes que se transformam em força e saúde, escovou bem os dentes, foi liberado, e correu para seu refúgio.
-“Vejamos...vejamos...O velho Arthur anda sempre naquele velho jipe sem capota. É pra lá e pra cá sempre naquele jipe velho e com os filhos amontoados em volta. Os filhos andam sempre armados, sempre com os dedos no gatilho. Seriam sete armados contra um desarmado que sou eu. Para falar com meu pai eles têm que dar a volta por trás da casa-grande e passar pela curva fechada na estradinha de terra. Meu pai diz que qualquer erro naquela curva é fatal, é morte certa. Uma distraída boba e pimba, o carro vai lá pro fundo do vale, que é cheio de pedras. Não é certo matar, mas seria mais errado ainda deixar esse velho bandido matar meus pais pra ficar com as nossas terras. Eu, que ainda serei o super herói mais conhecido do mundo inteiro, tenho que dar um jeito nisso. Tenho que proteger minha família e o farei. Juro pela minha honra que o farei.” Batendo no peito, reforçou seu juramento e saiu da toca da árvore à procura de munição.

- Meu bem, o velho Arthur mandou um recado. Mandou dizer que virá hoje à tarde conversar com você sobre a proposta dele.
- Já fiquei sabendo, minha querida. Que vontade de poder mandar bala naquele desgraçado...Se eles não fossem em sete, e bem armados, eu juro que reagiria.
- Disso eu estou sabendo, querido. Mas o que pode uma arma contra sete? E um homem direito contra sete assassinos?
- E você não fica desesperada, meu bem? Não te dá vontade de arrancar os cabelos de ódio?
- Pensei muito, meu querido. E cheguei à conclusão de que não vale a pena a gente se desgastar demais. Afinal de contas ainda temos onde morar na cidade, temos um bom teto e temos a renda dos aluguéis que meu pai me deixou. Vamos perder dinheiro aqui, mas preservamos a família.
- Não é justo. É sacanagem da grossa, mas terei que dar uma de frouxo e abaixar a cabeça. Terei que bancar o covarde pra defender minha família, mas juro, juro por tudo que há de mais sagrado, mulher, que nós voltaremos a ser donos destas terras. A que horas será que o filho de uma puta vem?
- Ele só mandou dizer que viria à tarde fazer uma visita com os filhos.
- Recado explícito: vem com a corja de assassinos.
  Mirinho ouvia a conversa dos pais abaixado perto da janela da cozinha, e logo que os dois se calaram, correu para o seu ponto estratégico. Ali subiu na velha mangueira até o último galho, ajeitou-se no tronco, verificou pela centésima vez o projétil escolhido, uma bela e branca pedrinha redonda de fundo de rio, e preparou-se para esperar com paciência pela vinda do velho ganancioso e sem escrúpulos. Um velho asqueroso que nunca poderia imaginar que encontraria pela frente um super herói de dez anos de idade.

   Dirigindo o jipe, o velho Arthur dava as últimas instruções aos filhos.
- Vocês já sabem que o negócio é chegar intimidando. Assim que descerem do jipe dêem uns tiros pra cima. Barulho de tiro faz essa gente cagar de medo. Depois é só entrar, todos de uma vez, e rodear o desgraçado. De preferência a família toda. Se algum empregado quiser se meter a besta, mandem bala. E na cabeça.
- Pai, diminua a velocidade. Essa curva da frente é fiadaputa. Perigosa pra caraio.
- Moleque, eu já rodeei tanto essas terras que conheço essas curvas de cor e salteado. Deixa comigo que o volante está em boas mãos.
   Para mostrar que sabia o que afirmava, o velho acelerou o jipe e entrou na perigosa curva. Quando atingiu seu ponto mais perigoso, o que demandava maior atenção e cuidado, alguma coisa acertou com violência sua cabeça, logo acima da orelha direita, e o jipe, puxado violentamente para a esquerda por seu condutor, caiu pela ribanceira cheia de pedras até explodir lá no fundo, mais de cem metros abaixo.
   Mirinho desceu da árvore, correu ribanceira abaixo do jeito que pôde, chegou perto dos destroços do jipe e constatou que não sobrara ninguém da perigosa família. Quatro dos corpos estavam jogados pelo chão, bem distantes do veículo, e o corpo do velho Arthur estava preso entre o volante e a lataria e parecia uma tocha humana acesa.
- O super herói ataca mais uma vez! Quer dizer...pela primeira vez...

Mirinho subiu correndo a ribanceira, passou pela frente da casa, tirou as roupas, mergulhou no riacho e ali ficou boiando por um bom  tempo até ouvir a voz do pai.
- Filho, já fez sua lição de casa?
- Já, pai. Já fiz, pai. Quando é que você e a mãe, pai, vão parar de me perguntar isso? Vocês parecem que não sabem que eu estou me preparando para ser um super herói quando crescer...
- Está bem, super herói. Agora vamos pra casa que o velho desgraçado deve estar chegando por aí. Aqueles filhos dele são perigosos.
Para se enxugar sem toalha, Mirinho correu pelado até em casa e só à porta colocou a calça e a camisa. A irmãzinha o olhava e ria, dizendo, feliz da vida:
- Eu vi Mirinho peladão..Eu vi o Mirinho peladão...
Mirinho correu atrás dela, pegou-a no colo e encheu de beijos aquele rostinho lindo e corado. Depois soltou-a, correu para a cozinha, subiu em uma cadeira e encheu o rosto da mãe de beijos dizendo diversas vezes que a amava muito. Finalmente correu para o seu quarto e foi fazer os deveres de casa. Era a primeira vez que mentia sobre eles. O velho Arthur e os filhos o fizeram atrasar-se naquele dia.
  Jurou que seria aquela a única mentira de toda sua vida.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 05/08/2007
Reeditado em 05/08/2007
Código do texto: T593517
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