Sonho III – Aflição - LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO - 6/08/2007

SONHO III

AFLIÇÃO

LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO

6/08/2007

O final de semana chega com o silêncio do apartamento e a solidão da mesa, a chuva esconde o sol numa nuvem cinza cobrindo toda a extensão da cidade, o mar verde esmeralda cedeu lugar para um verde escuro, ameaçador como o dia sem brilho. Desabou um temporal que mais parecia a anunciação do dilúvio e as janelas foram fechadas; vestiu-se com um casaco de frio pois o vento cortante assoviava causando ainda mais terror àquele silêncio de varanda olhando o Rio que serpenteava toda a cidade. Todas as sensações de abandono estavam ali, portas fechadas, o blindex da varanda servindo de barreira de um frio estranho que invadia as alturas e enchia o apartamento com o cheiro bom de cafeteira elétrica ligada a todo vapor.

Sem costume de frio intenso, decidiu improvisar algo para esquentar a manhã, vestiu o pijama da última viagem e se sentiu palhaço entre as bolinhas e o azul intenso da flanela, calçou as meias de correr na pista e pegou café, sentou-se no sofá como se a sala estivesse cheia de convidados, imaginou a cena, mas ultimamente a vida era tão atribulada que mal dava chances de sonhar e logo os pensamentos mudaram para os números, contas e recebimentos; de um salto chegou até a mesa do computador no quarto que transformou em escritório, procurou papéis importantes mas lembrou-se que era início de final de semana e podia relaxar, comer pipocas, sujar panelas, tomar litros de café, resfriar o vinho e pedir no restaurante da esquina um almoço para dois.

Almoço para dois. Quem convidaria de última hora para sua casa? Quem estaria disponível na solidão do Shopping? Tomou o celular leu mais uma vez a lista, até muito usada de nomes e números, amigos e amigas, uns casados, outros solteiros, outros indefinidos, outros infelizes, outros deprimidos e outros igual a sua alma aflita de solidão. Não se sentia infeliz como também não podia deixar de assumir que aquele silêncio e horas de caminhada do quarto pra sala, da sala para a varanda, da varanda para a cozinha, da cozinha para a sala do computador sendo que mal ligava o micro e já estava de volta na cozinha era uma verdadeira maratona; sem contar as idas ao sanitário para olhar o espelho e ver se a máscara não caiu ou se ainda sabia fazer xixi como quando era adolescente; horas sem fazer nada no banheiro, a mãe gritava, o irmão chorava, a irmã dava escândalos e ali era seu mundo. Todos dizem que existe uma ligação depressiva entre o ser e o sanitário, mas quando se está profundamente só ou em processo de criação, não existe local mais apropriado para desfrutar o sem mundo, O sem tempo, o Adônis desfilando a nudez corporal, atemporal. Esquentou água e mergulhou na banheira como se fosse uma piscina olímpica, olhou o teto, imaginou o caminho das formigas, desejou uma companhia e rapidamente o que seria um banho anti horário tornou-se o de segundos, pegou o roupão estendido logo acima de sua cabeça, enxugou-se e mais uma vez segurou o celular, do outro lado a voz quebrou a alegria, e a voz embarga, uma desculpa

Voltou ao banheiro, a água estava fria, fez todo o procedimento de renovação e jurou de si para si em voz alta que não ligaria mais pra ninguém, passaria os dias do final de semana a vivenciar em pleno, o abandono; sem cobranças, sem descer pelo caminho dos desesperados mirando o espelho, arrumando os cabelos para não olhar aquela câmera infeliz, que fiscalizava todos que passeavam de baixo pra cima ou de cima pra baixo na caixinha de inox. Esboçou um sorriso aguado, memorialista, quando era adolescente transava no elevador, agora nem pensar em chegar bêbado mesmo pelo elevador de serviço. Melhor mesmo nem cogitar em procurar braços ou abraços, tudo era proibido, e ficar com cara de boboca feliz seria uma grande punição. Saiu do banho com os pés descalços e arrepiou a alma, enxugou o corpo, penteou os cabelos, acendeu a TV deitou e dormiu até a noite, acordou, olhou o celular, seis chamadas não atendidas.