Trump toca trompete

Manhã de sábado, sol radiante do outono de Brasília. A roda de choro na entrada da Banca de Jornais da 208 Sul, quadra de Brasília, cujo nome é Copacabanca, segue sua rotina de alegria de todos os sábados. Entra gente, sai gente. Os clientes de jornal passam para retirar seus exemplares. Só tragédia!

O chorinho é choro, mas, paradoxalmente, é só alegria, pois quem chora ali chora de ternura, do contato com a beleza sublime da música. Os jornais mancheteiam um ataque terrorista em Estocolmo, outro no Cairo, a interminável guerra civil na Síria, com destaque para o ataque com armas químicas e a reação de Trump, a ira de Putin, mais uma vez se fala do Apocalipse. Trump é trompete, mas também é trombeta, e as trombetas é que vão anunciar o Apocalipse. Aff Maria!

Fotos e fatos carregados de ódio.

Dom Carlos Valença, fidalgo de origem ibérica, pernambucano de nascimento, proprietário da banca, polivalentemente atende, anota, recebe, dá troco, vende cerveja e água de coco, sorri, comenta poemas e, em tendo oportunidade, entra na roda com seu violão. O nobre proprietário da Banca da 208 Sul, quadra de Brasília, se toca – sem trocadilhos – com a tragédia e propõe algo inusitado: convidar Putin e Trump para virem assistir uma roda de choro ali. Depois de breve, urgente e democrática assembleia, clientes, assistentes e músicos deliberam unanimemente que vale a pena tentar. E deixam Dom Carlos livre para negociar a vinda dos dois. Um pandeirista, funcionário do Itamaraty, torna-se o vínculo com as instituições.

A negociação dura uma semana, Dom Carlos no comando civil, a resposta é dada pelo watzapp no sábado seguinte. E, maravilha das maravilhas, os dois topam. A proposta de Dom Carlos é peremptória: que venham assistir à roda de choro, que desistam da guerra e que assinem a Declaração de Paz. Não haverá meio-termo.

Por outro lado, as condições dos dois superpoderosos são de que haja uma varredura minuciosa em toda a quadra. Para isso, os apartamentos deverão ser desocupados uma semana antes da chegada dos dois, por questões de máxima segurança. Dom Carlos entende e cria uma comissão de frequentadores da banca para ajudar na fase seguinte, que lidará com os síndicos dos blocos. Em pouco tempo, há concordância geral, todos se programam para morar em outro lugar por uma semana, mas dizem que por nada desse mundo perderão a ocasião de participar do processo de paz, pelo menos no auditório, que será toda a periferia em torno da Copacabanca.

Finalizados os trâmites, chegam os dois em comitiva. Descem no aeroporto JK, vêm precedidos e acompanhados por enorme cortejo de segurança máxima. Ao chegar à Banca, apeiam das limusines. Trump chega primeiro, é cumprimentado por Dom Carlos, o fidalgo anfitrião, e, imediatamente, pergunta pela cachaça, anunciada como aperitivo. De imediato, passam-lhe o litro e um cálice próprio. Trump pergunta como se bebe, um circunstante se adianta:

- "É assim", diz, enquanto enche o cálice e vira de uma talagada só, estalando a língua. Muitos anos de praia!

Trump ajeita os cabelos laranja, teimosamente emaranhados pelo vento brasiliense, toma uma dose e estala também a língua.

-Viu, já estou aprendendo!

Putin desce depois, olha o grupo de músicos e seu primeiro comentário é de que o Brasil é igual à Rússia:

- É uma verdadeira salada étnica.

Trump contesta, cheio de razão:

- No, o Brasil parece muito mais com os Estados Unidos, uma sopa de raças.

Essa profunda diferença faz com que se azede o clima. De imediato, vem a manifestação conciliatória de Dom Carlos de que os três países têm essa particularidade, à diferença que a Rússia não tem substancial contingente negro em sua formação.

- É, o senhor tem razão, repetem em uníssono os dois prefeitos, quer dizer, líderes mundiais.

Finalmente, dá-se voz aos músicos, momento em que se pretende abrandar o coração dos visitantes, visando ao acordo que deve seguir-se. A primeira música tocada é "Insensatez", em flauta doce.

- Mas isso não é chorinho, argumenta coerentemente Putin.

- É bossa-nova, mas tocamos por causa do título, explica pacientemente em inglês norte-americano o rapaz dos teclados, que tinha sido pintor de casas em Newark.

- Ah, diz Putin. Entendi.

- Já escutei essa música nos USA, cochicha Trump.

E no ouvido de Putin:

- Muito famosa. Um dos três tenores a gravou, acho que foi Carreras.

- Pode ser, I am not sure, murmura Putin em inglês.

A roda apresenta vários outros títulos, com improvisos maravilhosos. Quando se esgota a produção tradicional, os chorões começam a entrar com a obra do Maestro Dinaldo Domingues, compositor pernambucano de chorinhos e também de valsas, radicado em Brasília, participante semanal da roda.

Surpreendentemente, os dois já o conheciam. Trump tinha até um cd do Maestro no carro presidencial.

- "Grande Maestro", dizem, apontando para Dinaldo, que se encontra presente na plateia.

Para terminar a sessão musical especial para os dois governadores, quer dizer, líderes mundiais, todos se unem para executar o Carinhoso, com vários improvisos em flauta, gaita, cavaquinho, violão, até trompete, num crescendo fantástico que termina em ovação da plateia.

Ao final da monumental execução, os dois se levantam e a aplaudem entusiasticamente. Em seguida, cumprimentam os músicos, um por um, fazendo elogios traduzidos simultaneamente por um sistema de som instalado nos arredores. Ato contínuo, fazem um brinde com a cachaça doméstica que só Dom Carlos tem. E ali mesmo, sob os efeitos daquela "marvada" pernambucana, assinam o Tratado de Paz entre os dois superpoderes.

- It's the beginning of a new era, diz Trump.

- No more war, Mr. Trump is right, complementa Putin.

- Long live the "chorinho", gritam os dois.

Enquanto caminham em direção às limusines, meio trôpegos pela branquinha, trombando um no outro, Trump sacaneia Putin:

- Trump é nome de instrumento musical, colega. Você não tem nome de instrumento musical, kkkkkk.

- É, mas toco balalaica. Você não toca nada, kkk. Bom, toco, mais ou menos.

Dai, quando acordei, tinha mijado na cama.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 11/04/2017
Reeditado em 18/04/2017
Código do texto: T5967764
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