VISÃO DO FUTURO

A interação entre mecânica e os saberes da psicologia social foi trabalhada pela ciência. Um exaustivo e sofisticado ajuste de traços e configurações eletrônicas resultou no surgimento de um original chamado Query.

Query recebeu aparência feminina. Gestos, olhar e voz eram emocionalmente intensos. A alma permeava a forma.

Introduzida no ambiente midiático para divulgar um selo comercial, Query se converteu em um prazer suave e prolongado na vida das pessoas. Suas exposições foram gravadas. Os admiradores, constantemente, tratavam de reproduzi-las.

Tamanho era o carisma da imagem eletrônica, que o produto anunciado ficou em plano subalterno. O reclamo não originava efeitos lucrativos. Na verdade, a atenção das pessoas se voltava unicamente à personagem virtual.

Impossibilitados, em face da grita geral, de reconfigurar a identidade da criatura, os agentes publicitários, para salvar o anúncio, dispensaram Query e recorreram a um expediente conhecido. O apelo comercial foi entregue a esportistas famosos, donos de uma atmosfera blasé, que expunham a mercadoria por estarem associados ao êxito financeiro.

Ao sair da mídia, Query gerou abalo. A lástima foi extrema. Sem a criatura eletrônica, as pessoas expunham desânimo ante a insalubridade do meio social.

Felizmente, o afastamento teve curta duração. Embora facetados por meios eletrônicos, os gestos, o temperamento e a voz de Query se tornariam elementos indissociáveis do cotidiano.

Ao perceber a importância do suporte operacional da criatura, a TV Galáxia o destinou à teledramaturgia. O sucesso evoluiu. Query logo obteve passaporte para o exterior. Na companhia de astros do cinema de carne e osso, ela recebeu prêmios por inigualáveis atuações em comédias, pelo destemor em aventuras, por atuações em dramas e prosas românticas e por inúmeros desempenhos sensuais.

O êxito de Query amenizou o cotidiano. A ficção devolveu às pessoas um prazer há muito reprimido pela competitividade.

Enquanto isso, um excêntrico e abastado produtor de Hollywood, de nome Perry Simon, completamente seduzido pela atriz eletrônica, viu-se forçado a adquirir a engenharia responsável por sua operacionalidade.

O milionário investiu no aperfeiçoamento da tecnologia. A forma pessoal e as qualidades de Query saíram do universo abstrato e migraram em definitivo ao mundo palpável. O revestimento de sua estrutura passou a imitar com precisão a pele humana. Submetida a uma evolução programada, Query desenvolveu ainda mais a autonomia, o convívio e a inteligência consciente. Protagonista dos novos tempos, adquiriu personalidade e identidade civil. Em seu nome, ela pôde concentrar apreciável fortuna material.

Apesar dos ganhos materiais, o inusitado casal conheceu desavenças. A medida em que Query obtinha desenvoltura e liberdade, Perry Simon se tornava agressivo e ciumento. Lentes amadoras e profissionais, com frequência, passaram a registrar discussões e escândalos em locais públicos.

Os desentendimentos ganharam vulto, percorreram tribunais. Simon apresentou-se como legítimo proprietário da criatura mecanizada. Investido nessa condição, ele achava que lhe era permitido desativar a bel prazer o mecanismo responsável pelo funcionamento de Query.

A mídia conferiu destaque mundial aos litigantes. Em entrevista ao Der Spiegel, Simon assim se manifestou:

“Investi milhões de dólares no projeto que originou a Query atual. Essa engenhoca me pertence. Posso desativá-la quando me for conveniente”.

O New York Time, de sua vez, concedeu destaque a sustentação feita por Query no tribunal:

“A consciência, meritíssimo, não pode ser escravizada. O senhor Simon lucrou muito com o meu trabalho. Nada lhe devo. Hoje, quero ser livre e independente. Meu futuro não lhe pertence”.

Ao final do rumoroso divórcio por onde foram discutidos os direitos de propriedade sobre o engenho tecnológico, Query obteve em definitivo o controle de sua vida.

Apta a escolher livros, jornais e revistas, roupas, perucas e maquiagens, carros, joias e mansões, abonada pela justiça, senhora absoluta do seu destino, Query se foi ao encontro da felicidade, sonho perseguido por qualquer criatura normal.

Perry Simon jamais se recuperou do abalo pessoal. Foi da sacada de seu palácio, afogado no álcool, que ele viu Query pela última vez. Ainda hoje, retém na lembrança quando o carro da atriz, um Luxury Jet, cor metálica, desapareceu do alcance dos seus olhos. Sobrou-lhe, depois de tudo, a dolorosa certeza de que não haveria reconciliação.