SONHO IV - BARULHO DO MUNDO - LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO - 7/08/2007

SONHO IV

BARULHO DO MUNDO

LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO

7/08/2007

Todo o mundo se enchia de segunda feira. Quanta preguiça impedia de sair feliz da cama que amoldava o corpo em descanso, mas, o primeiro capitalista dos astros estava implacável, invadia o quarto pelas frestas da cortina, cinco horas da manhã e era dia escarlate, céu pegava fogo num tom purpúreo que apenas a mãos sábia da natureza possui o bom gosto de traçar em tons fortes o céu que dali a pouco seria de tropical azul.

O Sol estava ali queimando a pele dos jovens fervendo a praia, as plantas do jardim, derretendo o asfalto; o inferno não estaria abrasador como aquela primeira hora, pensava ligar o gelado ar condicionado do carro para não chegar ao trabalho com cheiro de pimentão verde de mau humor ao sabor de alho e cebola, cheiros peculiares do café da manhã. Não suportava comer as torradas e assar o ovo sem a cebola roxa, afinava o sangue, e jamais esqueceu o alho dormido em água de sereno para evitar o enfarte, bem sabia que a mesinha da avó era muito mais empírica que científica mas, fazer o quê? Foi educado daquela forma e um dos seus princípios era não quebrar as normas da família.

A cabeça ainda dominada pelo marasmo do final de semana fazia a retrospectiva da solidão, mas ali era um novo momento para inventar uma diabrura de adolescente; fazia tempos que não se atrevia a uma loucura, afinal todos confundiam o profissionalismo com a postura competente de quem deseja aumentar a conta bancária a cada mês.

Passou a observar o quanto o silêncio era dinâmico, e já estando fora do apartamento o primeiro bom dia era para o vigia que já manuseava o controle remoto da garagem. Costume cantar os pneus naquela rampa íngreme, e fazia como uma forma de repúdio. Dobrava a rua numa velocidade controlada forçando o carro a levantar uma nuvem de poeira capaz de fazer redemoinhos com folhas secas, de tão desavergonhados levantavam as saias das empregadas domésticas que voltavam da padaria próxima com o pão e leite de seus senhores, logo em seguida baixava o vidro da porta só para rir com a cascata de impropérios que as mais ousadas berravam rua a fora, molecagem!

No semáforo desligava o CD de clássicos da MPB e deixava rolar as infelizes notícias alardeadas pelos repórteres sensacionalistas das misérias humanas. Pensou sarcasticamente comprar um aparelho de som com maior volume ao ponto de estourar em raivas os adolescentes mal criados e preguiçosos da vizinhança, lembrava-se da janela do quarto em que ficava diretamente fiscalizando as quadras de futebol, basquete e vôlei do condomínio, sem contar com as pistas improvisadas dos skatistas justamente na hora do sono final de tarde e gritavam uns com os outros; jogo de futebol sem sentido, a bola já deixava de ser oficial para ser um palavrão qualquer.

Distanciava-se do condomínio com a sensação de alívio; mais um semáforo vermelho, era sina todos os dias de dez anos aquele semáforo estava vermelho justamente aquela hora, filas de carro vagarosos, esperavam o assalto no cruzamento mais perigoso do bairro, a vontade era desligar o carro e ficar ali até o órgão especializado intervir na sua ação, olhou o relógio, mais uma vez em atraso de cinco minutos para a carona que esperava a menos de cem metros.Não sabia porque dava aquela carona, a mulher era uma chata, só falava nos filhos e maridos e compras ou em dívidas, só desejava bom dia quando saia do carro às carreiras para o elevador. Os mais estressados tocavam as buzinas, umas fracas outras fortes, na verdade achava aquilo uma idiotice mas se a indústria implantou aquele objeto indesejável de barulho porque não utilizar fazendo coro aos indelicados. Olhou pra colega, esboçou uma cara de quem não queria papo e apertou a buzina do carro ao ritmo do time adversário que havia perdido o jogo na noite passada, fez-se um silêncio e só aquela corneta estridente continuava, mesmo com o semáforo aberto e todos os veículos saindo em marcha fúnebre. A carona espantada tentou acalmar mas foi em vão, ouviu um tratado sociológico de boas maneiras e calou-se.